O texto aborda o papel do Brasil na política internacional, contextualizado a partir da fundação da ONU e mudanças na estrutura internacional. Trata também das grandes questões atuais, como mudança do clima, desigualdade crescente e ameaças à saúde global, em contexto de transformações geopolíticas. Tais reflexões fundamentam a necessidade de reformas dos mecanismos multilaterais vigentes, tanto instituições formais, como a ONU, como foros informais, como o G-20, salientando a importância de uma ordem multipolar e o papel do Brasil e da América Latina nesse contexto.
A Política Internacional é, na sua essência, um processo de alto grau de dinamismo, que reflete, por um lado, mudanças nas relações de poder entre os Estados-Nação – ainda os principais atores nesse palco – e, por outro, transformações econômicas, sociais e culturais em nível nacional, regional e global. Um exemplo é suficiente para ilustrar essa natureza mutante da política internacional: a ausência de referência na Carta de São Francisco da expressão “meio ambiente” (ou algo de sentido equivalente). Quem pode pensar na política internacional dos nossos dias sem considerar esse tema e, em particular, a ameaça do aquecimento global? Poderíamos elencar muitas outras questões que, independentemente de referências ocasionais, não tinham, nem de longe, a importância que ganharam à medida que a história da Humanidade evoluiu e certos valores se foram consolidando. É o caso dos direitos humanos, de um modo geral, da questão racial, da equidade de gênero. É também o caso dos temas relacionados com a saúde, cuja centralidade foi trazida à tona, de forma dramática, com a pandemia da Covid-19, mas que já se anunciava com o Ebola, o Zika, a Gripe Aviária etc. Essas transformações não só impõem mudanças institucionais como, cedo ou tarde, impactam nas relações entre os Estados.
Poucas vezes na história da Humanidade, a natureza dinâmica da política internacional foi tão evidente quanto agora.
Poucas vezes na história da Humanidade, a natureza dinâmica da política internacional foi tão evidente quanto agora. Falando em termos macro, a geração de que faço parte assistiu ao fim da bipolaridade característica da Guerra Fria, com o concomitante desmoronamento da União Soviética, de uma forma que nem os mais otimistas do campo capitalista poderiam imaginar. Não foi apenas o fim do comunismo (ou do “socialismo real”, como se costumava dizer na época), mas o fim de um Estado plurinacional, que, em grandes linhas, era uma herança do Império czarista. Seguiu-se um breve período – menos de duas décadas – de algo que se poderia qualificar de “hegemonia consentida”, em que a predominância dos Estados Unidos – “a única superpotência remanescente”, no dizer da Secretária de Estado Madeleine Albright – não era de fato contestada. Durante cerca de vinte anos, com algumas oscilações, Washington pôde não só impor sua vontade nos grandes foros mundiais, mas fazê-lo com o beneplácito ou, pelo menos, a aquiescência, ainda que relutante, das demais potências. Foi assim, por exemplo, na primeira Guerra do Golfo, no início dos anos 1990, em que a anexação do Kuwait pelo Iraque forneceu a justificativa para o emprego da força, autorizado pela ONU. A comunidade internacional também se revelou tolerante quando da invocação ao direito à legítima defesa em relação aos ataques da Al Qaeda. Nesse caso, pode-se mesmo dizer que a tolerância com a intervenção norte-americana foi até maior, permitindo que a ocupação militar passasse a abranger o presumido objetivo de “construção de nação” (nation building) no Afeganistão.
No plano econômico-comercial, a doutrina prevalecente nos centros do capitalismo mundial, em especial o “Consenso de Washington”, foi imposta de forma quase universal, em parte pela persuasão, que contou com o apoio, entre outros, dos meios de comunicação de vários países, em parte por algum nível de coerção sobre os países recalcitrantes, seja por meio de retaliações comerciais, seja por obstáculos ao acesso às fontes de crédito controladas pelas instituições financeiras internacionais. No campo do comércio, se procurou revestir essa imposição de um certo manto multilateral, por meio das rodadas de negociação comercial, especialmente a Rodada Uruguai, e de certa legitimidade internacional, com a criação da OMC[1]. Mesmo aí, a inclusão de temas não estritamente comerciais, como propriedade intelectual, serviços e investimentos, só foi obtida mediante grande pressão política sobre os países em desenvolvimento. De alguma forma, o sistema estabelecido pela OMC refletia, no campo econômico-comercial, o “multilateralismo assertivo”[2], que caracterizou o domínio norte-americano nas deliberações do Conselho de Segurança, especialmente na última década do último século.
Em paralelo, as burocracias das instituições financeiras internacionais tratavam de garantir, mediante uma política de empréstimos, inspirada naquele consenso, que a tríade “liberalização, privatização, desregulamentação” passasse a constituir uma espécie de “regra de ouro” para os projetos de desenvolvimento a serem financiados. Restringir a presença do Estado nesses projetos passou a ser uma prioridade, espelhada no conceito, altamente discutível, de crowding out, segundo o qual a participação do Estado “afugentaria” o investimento privado. Basta olhar para o crescimento chinês, largamente baseado na cooperação entre o Estado e empresas privadas, para constatar quão falacioso era esse conceito. Para os teóricos da época, inclusive os de vocação mais filosófica, como Francis Fukuyama (1992), que proclamou (prematuramente, como se viu) o “Fim da História”, uma certa utopia havia sido alcançada, com base no sistema capitalista de produção e nos preceitos da democracia liberal, pouco seguidos, ou seguidos de forma muito seletiva na prática.
No início do novo milênio, essas verdades começaram a ser sacudidas. Antes mesmo que o crescimento espetacular da China levantasse o espectro da “Armadilha de Tucídides”[3], a tolerância com a dominação norte-americana foi abalada pelo abuso de ações unilaterais por parte de Washington em seu confronto com o regime de Saddam Hussein. Bem antes do ataque às torres gêmeas, que serviu de pano de fundo para a ação militar contra o Iraque, a dureza com que os Estados Unidos, sempre apoiados pelo Reino Unido, aplicavam o regime de sanções ao governo de Bagdá, imposto na sequência da invasão do Kuwait, era motivo de incômodo para muitas capitais europeias, especialmente Paris e Berlim, sem falar naturalmente em Beijing e Moscou. Também no mundo árabe, que inicialmente fora, com exceções, favorável à punição do Iraque, o sofrimento das pessoas comuns naquele país era motivo de preocupação. O sistema de inspeções em relação ao regime de Bagdá era visto por muitos como desnecessariamente agressivo e, mesmo, atentatório à soberania iraquiana, que as resoluções aprovadas pelo Conselho proclamavam respeitar. Assim, dados o poder da economia e a força das armas, a hegemonia norte-americana continuou a exercer-se, mas de forma cada vez menos consensual.
As resistências aos excessos praticados pela potência hegemônica se acentuaram de modo notável quando da segunda guerra do Golfo. Diferentemente do que ocorrera em relação à primeira ação militar contra o Iraque, o Conselho de Segurança não autorizou a invasão daquele país em 2003. A oposição de três dos membros permanentes (Rússia, China e França), além de países com forte influência regional e global, como Alemanha, impediu que o almejado consenso fosse alcançado. Os Estados Unidos recorreram à ação unilateral, tendo o Reino Unido como único apoio significativo. Na Cúpula dos Açores, realizada em 15 de março daquele ano, que iniciou a contagem regressiva para a invasão do Iraque e a derrubada de Saddam Hussein, além desses dois países, apenas a Espanha e o anfitrião, Portugal, se fizeram representar por seus governantes[4].
Talvez o símbolo mais evidente do dissenso entre os membros permanentes, além das previsíveis objeções de Rússia e China, tenha sido o forte discurso condenatório da ação armada por parte do então ministro do Exterior da França, Dominique de Villepin. Dentre as grandes potências, ainda que não membro permanente do Conselho de Segurança, a Alemanha, à época governada por Gerhard Schroeder, à frente de uma coligação entre Social-Democratas e Verdes, manifestou sua oposição ao uso da força, assim como vários outros países, entre os quais o Brasil[5].
O conceito de um mundo multipolar ou multipolaridade é, em geral, atribuído a Yevgeni Primakov, sucessivamente ministro do Exterior e primeiro-ministro russo, no final dos anos 1990. Primakov tinha em mente a articulação do seu país com Índia e China para enfrentar a hegemonia norte-americana. O termo foi abraçado por outros governos, em especial o da França, muito crítico da hegemonia da “hiperpotência”[6]. Países como Brasil e Índia valorizaram a ideia de multipolaridade e buscaram contribuir para sua realização prática, com a inclusão de nações em desenvolvimento no jogo político global. Seria muito longo – e provavelmente desnecessário – recapitular as ações desses dois países com o objetivo de reforçar um mundo multipolar. Bastaria deixar registradas iniciativas como a do IBAS (o Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul reúne três países em desenvolvimento, não membros permanentes do Conselho de Segurança, cada um em um continente do chamado Sul Global) e, mais notadamente, os BRICS[7].
A prevalência da multipolaridade nunca esteve assegurada, embora, em determinado momento, para desconsolo de pensadores mais conservadores de seu país, o Presidente Barack Obama a tenha reconhecido como uma realidade. Ao longo de seus mandatos, Obama passou a pregar uma liderança compartilhada, porém com os Estados Unidos sempre em posição dominante. No caso da intervenção militar na Líbia, motivada por supostas preocupações humanitárias e inspirada no conceito de “responsabilidade de proteger”[8], Washington chegou a sugerir, em curiosa formulação, que exerceria sua liderança “a partir da retaguarda” (leading from behind). Isso significava, em essência, deixar o trabalho pesado do campo de batalha para os próprios líbios e, em certa medida, para os europeus e outros aliados, como a Turquia, concentrando o seu próprio esforço de guerra em bombardeios aéreos. De forma irônica, mas também trágica, o embaixador norte-americano estabelecido em Behngazi seria a vítima fatal do ataque terrorista em 2012, para “comemorar” o 11 de setembro, de uma das facções em luta pelo poder, após a morte do líder/ditador Muammar Gaddafi.
Hoje, o centro das análises sobre política internacional é a possibilidade de uma nova Guerra Fria, tendo como protagonistas Washington e Beijing. Em um dos textos mais conhecidos a esse respeito, Graham Allison alude à quase inevitabilidade de um conflito entre ambos, evocando, a propósito, a “armadilha de Tucídides”. Em outros textos[9], tenho procurado mostrar, sem que isso signifique desconhecer a importância da rivalidade econômica e estratégica entre os dois gigantes, que outros atores da cena internacional têm peso político e econômico considerável e não podem ser desconhecidos ou menosprezados.
Não está claro, nesse momento, se teremos uma bipolaridade com traços multipolares, ou se – o que não é tão diferente, mas não deixa de ter sua singularidade – o mundo será mais multipolar, ainda que com uma dominância bipolar. Não há determinismo na História, e não sabemos como a evolução dos fatos e o comportamento dos principais atores envolvidos conformarão o novo cenário. Como detalharei mais adiante, desafios globais, como mudanças do clima, ameaças à saúde e desigualdade, influirão nesse desenho. Em um quadro marcado por incertezas, pode-se afirmar, com razoável segurança, que o mundo não voltará à “unipolaridade consentida” do período pós-Guerra Fria, embora a ascensão formidável do Império do Meio possa suscitar dúvidas de que outra hegemonia possa estar despontando no horizonte.
Os novos desafios globais, além das “tradicionais” questões ligadas à Paz e à Segurança, nos remetem à construção de uma ordem internacional mais cooperativa, sujeita a normas pactuadas entre os Estados, com a coerção reduzida a um mínimo. Em outras palavras, o que está em jogo é o futuro do “multilateralismo”, um conceito valorativo, que não deve ser confundido com o de multipolaridade, de essência descritiva. Os dois se condicionam mutuamente, mas não são a mesma coisa. Na segunda parte deste ensaio, trato dos desafios do multilateralismo e, em particular, de sua principal expressão: as Nações Unidas.
A construção multilateral e seus desafios
Reza a lenda que, indagado por um jornalista sobre o que pensava da Civilização Ocidental, Mahatma Gandhi teria respondido: “seria uma boa ideia”. Autêntica ou não, a citação é incontornável. E nos leva a outra questão pertinente nos dias atuais, na qual a frase do líder indiano se encaixa. A quem perguntar “o que acha das “Nações Unidas?” seria legítimo responder, como supostamente teria feito o pai da independência indiana: “seria uma boa ideia”.
Com efeito, é difícil ler os parágrafos preambulares da Carta de São Francisco sem notar a distância entre o que foi ali proposto e o mundo em que vivemos. Neles se fala da preservação das gerações futuras do flagelo da guerra, da dignidade do ser humano, da igualdade entre homens e mulheres e entre nações grandes e pequenas. E não faltam referências à promoção do progresso social, à liberdade, à prática da paz e da tolerância. Tudo isso a ser obtido por meio da cooperação, sem uso da força – salvo casos muito excepcionais explicitamente assinalados na própria Carta – e respeitando princípios da não intervenção e da autodeterminação.
É difícil ler os parágrafos preambulares da Carta de São Francisco sem notar a distância entre o que foi ali proposto e o mundo em que vivemos.
Se encararmos esse enunciado como um programa a ser cumprido, ele é altamente elogiável. E, com exceção da já mencionada falta de preocupação com o meio ambiente, é impressionantemente atual. Até mesmo a igualdade entre os sexos, ardorosamente defendida por nossa compatriota Bertha Lutz, embora pouco praticada na época, estava ali. Mas é evidente que o programa ia muito além do que os Estados estavam dispostos a cumprir.
Dois eventos recentes, ilustrados por amplo material gráfico capaz de chocar os mais insensíveis, são indicativos da persistência dessa situação paradoxal. A derrocada norte-americana no Afeganistão e a sequência de desastres humanos e naturais no Haiti atestam, de modos diversos, a impotência do organismo internacional em enfrentar questões cruciais que afligem boa parte da Humanidade. Catástrofes naturais ou causadas pela mão humana – ou ainda uma mistura das duas coisas – não são objeto de tratamento eficiente ou adequado pela comunidade internacional.
No caso do Afeganistão, o papel da ONU foi pura e deliberadamente acessório. Mal se ouve falar da UNAMA, missão criada pelo Conselho de Segurança, na esteira da intervenção militar norte-americana naquele país. Toda a operação, inclusive a fracassada intenção de “construção de nação”, foi comandada pelos Estados Unidos, com o eventual concurso de alguns sócios da OTAN. A princípio, como aludi acima, Washington justificou os bombardeios do território afegão com base no princípio da legítima defesa, nos termos do Artigo 51 da Carta da ONU, em face dos ataques terroristas de 11 de setembro. Logo os estrategistas norte-americanos descobriram – se é que já não tinham percebido antes – as vantagens de uma presença prolongada no Afeganistão, a meio caminho entre o Oriente Médio, inclusive o Irã, com o qual o país faz fronteira, e a Ásia Central e do Sul, chegando, no extremo leste, a confrontar-se com a China.
Um pouco de conhecimento de História teria talvez poupado Washington – e, sobretudo, o povo afegão – de uma tragédia anunciada. Passagem de vários exércitos, desde os tempos de Alexandre, o Afeganistão nunca foi, a rigor, conquistado. Mesmo o domínio britânico, obtido com alto custo humano, na segunda metade do século XIX, foi em realidade limitado ao controle da política externa e de defesa, para fazer frente ao império czarista, na disputa pelas rotas que conduziam à Índia, a “joia da coroa” da Inglaterra vitoriana.
A análise dos vultosos recursos despendidos pelos Estados Unidos no Afeganistão ao longo de duas décadas permite constatar que somente uma parcela muito reduzida foi efetivamente empregada em benefício da população, concentrando-se o grosso dos gastos na área militar, em muitos casos em favor de empresas norte-americanas às quais tarefas essenciais de segurança foram terceirizadas. “Construção de nação” é uma tarefa complexa, reveladora de verdadeira hýbris. Se tivesse que ser empreendida, não poderia caber a uma potência estrangeira, interessada no uso estratégico-militar do território afegão. A rigor, nesse caso, não se pode sequer dizer que a ONU falhou, uma vez que sua presença foi marginal e instrumentalizada pela potência intervencionista[10].
No Haiti, assistimos a uma situação diferente. Sem entrar na discussão dos erros e acertos da Missão de Estabilização da ONU, a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) foi uma presença multilateral importante, com influência real e que chegou a propiciar, de forma indireta, ações voltadas para o desenvolvimento social, da pequena agricultura ao meio ambiente. Em um momento crucial da evolução política do país, quando da primeira eleição após a queda/derrubada de Aristide, a orientação de países como Brasil e Chile, além do próprio Conselho Eleitoral Haitiano, no sentido de confirmar a vitória do presidente Préval acabou sendo adotada em detrimento da tentativa de impor um segundo turno, duvidoso e altamente impopular, favorecida pelos Estados Unidos, entre outros atores presentes no cenário haitiano. No Haiti, a principal falha da ONU foi não ter assumido de forma mais decisiva a tarefa de “construção da paz pós-conflito” (post-conflict peace building), objeto de uma comissão criada no bojo das reformas promovidas pelo então Secretário-Geral Kofi Annan, limitando praticamente sua ação ao aspecto da segurança e deixando a cargo de cada país (e a um sem-número de ONGs) a iniciativa de projetos em favor da população. As próprias regras do Conselho de Segurança tolhiam uma ação mais construtiva. Para citar um exemplo: conseguir que os recursos da MINUSTAH pudessem ser empregados na desobstrução de uma via, após algum deslizamento, exigia complexas gestões diplomáticas e enfrentava resistências com base no pressuposto de que a missão de paz da ONU deveria restringir-se à manutenção da ordem.
O brutal terremoto de janeiro de 2010 agravou essa situação e trouxe outro forte complicador político: a presença dominadora da Fundação Clinton na reconstrução do país. Em uma situação no mínimo esdrúxula, o ex-presidente (e marido da então Secretária de Estado) Bill Clinton era o representante do Secretário-Geral da ONU para a reconstrução, ao mesmo tempo que a Fundação que leva o seu nome expandia sua ação no país, chegando mesmo, segundo depoimento que ouvi do próprio ex-presidente René Préval, a assumir (ou pretender assumir) funções cartoriais em relação à alocação de propriedades após o cataclismo. Contrariamente ao que ocorrera em 2006, os Estados Unidos passaram a ter um papel dominante na vida política haitiana, influindo de forma decisiva nas ações da ONU. Diretamente e através da OEA, Washington na prática “conduziu” a eleição presidencial, mantida para o final do ano de 2010, com reflexos negativos no seu resultado que se prolongam até hoje. Além disso, premida por considerações orçamentárias, a MINUSTAH foi sendo progressivamente reduzida, até extinguir-se, antes que forças de segurança haitianas estivessem capacitadas a enfrentar os complexos problemas do país. O assassinato do presidente Jouvenel Moise e as complexas circunstâncias que o cercam dispensam maiores comentários a respeito.
Em um caso como em outro, a Comunidade Internacional falhou, e os elevados conceitos que constam da Carta de São Francisco não foram levados em conta. Em ambas as situações – seja por omissão, seja por marginalização deliberada – a ONU não pôde cumprir o seu papel de promotora da paz e do progresso. É fácil, mas provavelmente inútil, debitar esses fracassos aos desígnios do “imperialismo norte-americano”. Para aqueles que acreditam que a organização internacional, devidamente reformada, pode exercer um papel positivo na construção de uma ordem mais justa, pacífica e harmoniosa, Haiti e Afeganistão serão por muito tempo lembrados como símbolos trágicos das insuficiências do atual quadro institucional que deveria reger o mundo.
Questões como essas, ligadas à Paz e à Segurança internacionais, já seriam suficientes para tornar obrigatória uma reflexão profunda sobre a necessidade de adequação dos meios de ação da ONU aos propósitos enunciados no seu documento fundacional. Outros fatores tornam tal reflexão – não como puro exercício acadêmico, mas como parte de uma indispensável ação reformadora – ainda mais urgente.
Pareceria ocioso enfatizar as mudanças no quadro geopolítico desde a criação das Nações Unidas. Por um capricho do destino, a insistência de Washington em ter o debilitado regime de Chiang Kai-shek como membro permanente do Conselho de Segurança, evitou que uma dessas mudanças – a notável ascensão da China – exigisse uma reforma da Carta, tendo bastado trocar a representação do país. A “China Nacionalista” ficaria reduzida à sua dimensão real de território economicamente relevante, mas sem reconhecimento internacional, ao passo que Beijing viria a ocupar o lugar que os formuladores norte-americanos da Carta haviam reservado a seu fiel aliado. Outras transformações, entretanto, como o crescente peso de países em desenvolvimento, entre os quais, Índia e Brasil, o ressurgimento da Alemanha e do Japão, a emergência do continente africano, a crescente importância de entidades supranacionais e uma participação efetiva da sociedade civil nos assuntos internacionais não encontraram ainda um reflexo adequado no arcabouço institucional da ONU.
Esses fatos são conhecidos há tempos. Mas há novas realidades que afetam o tecido social dos membros das Nações Unidas e da comunidade internacional como um todo e que estão longe de ter um tratamento adequado pelo sistema. Em parte, essa inadequação pode ser atribuída diretamente à falta de vontade política dos Estados-membros ou, como nos exemplos citados acima, à irrefreável prepotência daqueles que buscam manter a hegemonia. Mas há também insuficiências estruturais que podem e devem ser corrigidas. De certa maneira, a criação do G-20 como um foro mais ou menos permanente, uma iniciativa fundamentalmente norte-americana, na administração Bush, embora com consultas a vários países (inclusive o Brasil, à época do Presidente Lula), foi indicativa da percepção de que era necessária alguma mudança no sistema internacional de tomada de decisões, começando por foros informais de coordenação política.
Hoje, questões como Desigualdade, Mudança Climática e Saúde Global (propositadamente grafadas aqui com maiúsculas) nos impelem a acelerar e formalizar o processo de reformas. Temas como esses, centrais para a sobrevivência da Humanidade, não podem ser tratados por órgãos burocráticos, cujas decisões não são devidamente levadas em conta pelos Estados-membros. Obviamente, dependeremos sempre do aporte técnico de entidades como a OMS e das organizações ligadas ao meio ambiente. Essas instituições continuarão a ter um papel essencial, até mesmo em função da credibilidade científica que carregam. Por isso mesmo, devem ser fortalecidas. É mister reconhecer, contudo, que, por maiores que sejam seus méritos, elas não dispõem – e dificilmente poderão dispor – de força política para garantir o cumprimento (enforcement) de suas decisões. Por outro lado, seria absurdo admitir que temas vitais para toda a Humanidade – e que só de forma muito indireta se vinculam a questões de paz e segurança – estejam sujeitos, como por vezes se propõe, a um órgão em que cinco países têm o poder de obstruir qualquer ação. Certamente, só uma grande distorção, provocada em boa parte pelas limitações institucionais do sistema, pode permitir que esses assuntos sejam levados ao Conselho de Segurança, tal como ele existe hoje. Esse poder exacerbado do órgão encarregado da paz e segurança nos faz lembrar do pensamento realista, mas também irônico, de Blaise Pascal: “não se podendo fazer com que o justo fosse forte, fez-se com que o forte fosse justo”.
Não quero me estender sobre a eventual solução para essa verdadeira crise institucional do sistema. E muito menos discutir, aqui, as complexidades de uma reforma do Conselho de Segurança, com que a ONU lida há décadas, sem encontrar solução. Limitando minhas considerações às questões socioambientais, ouso pensar que o G-20, tomando na prática o lugar do G-7 (ou do G-8), foi um avanço, apesar de seu caráter informal e do excessivo peso de alguns países e a quase ausência de outros (os africanos, por exemplo, com a única exceção da África do Sul). O importante neste momento não é apresentar soluções prontas. Essas, na verdade, só podem nascer do debate, tão democrático quanto possível, no seio da comunidade internacional. A pandemia e o aquecimento global – agravados pelas enormes desigualdades entre os Estados e no interior deles – são razão suficiente para convocar-se uma grande conferência, como foram Versailles, Bretton Woods e São Francisco. Poderia juntar a esses temas a permanente ameaça colocada pela existência de imensos estoques de armas nucleares, constantemente expandidos e modernizados. Uma nova São Francisco é necessária, não talvez para redesenhar o sistema como um todo, mas para adaptá-lo às realidades mais prementes. Foi assim ao final das duas catástrofes bélicas do século XX. Deve ser assim no mundo que temos que reconstruir ao cabo da catástrofe sanitária que ainda enfrentamos e na iminência da catástrofe climática, que talvez ainda possamos evitar.
Uma nova São Francisco é necessária, não talvez para redesenhar o sistema como um todo, mas para adaptá-lo às realidades mais prementes.
O Brasil no mundo
Ao despedir-se da Câmara dos Deputados, naquele histórico 24 de agosto de 1961 – e antes mesmo que estivesse definido o cargo que lhe seria destinado e que desempenhou de forma singular e inspiradora – San Tiago Dantas afirmava: “não é mais hoje [o Brasil] (...) um país de segunda ordem...Hoje (...) estamos aptos a levar uma contribuição imparcial em que não apenas nos voltamos para a solução dos problemas em que nos achamos diretamente implicados, mas também para a solução de outros (...) por cujo bom encaminhamento (...) já nos sentimos responsáveis”[11].
Em minha vida como diplomata (e não apenas como chanceler), pude viver muitas ocasiões em que esse potencial antevisto pelo formulador da Política Externa Independente se revelou de forma inequívoca, fazendo calar os espíritos mais céticos, desde que impregnados de um mínimo de honestidade intelectual. Atuando como Representante Permanente do Brasil junto às Nações Unidos durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, pude perceber a capacidade de atuação do Brasil em questões sensíveis, como as da antiga Iugoslávia e a das inspeções sobre o desarmamento do Iraque[12]. Como ministro das Relações Exteriores do Presidente Lula, participei, como testemunha ou ator, de várias situações em que a ação positiva do Brasil era invocada por grandes potências, seja em relação ao Oriente Médio, como no caso do programa nuclear iraniano, seja em complexas negociações de natureza econômica e comercial, da OMC ao G-20[13]. Desnecessário dizer que essa atuação, que éramos frequentemente solicitados a desenvolver, resultava não só em prestígio internacional para o país, mas também na possibilidade de defender de modo eficaz os nossos interesses em foros variados.
Ao definir o interesse da Rússia na construção de um sistema multipolar, Yevgeni Primakov tinha em mente a necessidade de enfrentar a então incontrastável hegemonia de Washington. O interesse do Brasil em um mundo multipolar em que possamos atuar com desenvoltura da forma indicada por San Tiago Dantas não é, na essência, diferente, embora o “risco existencial” que historicamente pesou sobre a Rússia seja de outra dimensão. Por outro lado, deve-se assinalar que o problema para o Brasil de hoje não se esgota na hegemonia norte-americana – e, em particular, na maneira como ela é exercida em relação à América Latina e Caribe. Ele inclui nossa atitude em relação a outras grandes potências, algumas delas verdadeiros blocos (em termos econômicos), como Estados Unidos e China, e outras, blocos por definição, como a União Europeia.
Em um mundo multipolar complexo, tingido por certa tendência à bipolaridade, o Brasil, como grande país que é, tem que tratar de defender seus interesses ao mesmo tempo que contribui para a construção de uma ordem internacional justa e pacífica, com respeito aos direitos humanos e à natureza. Essa, porém, é uma enorme tarefa. Para levá-la adiante não basta uma diplomacia baseada em critérios racionais e pragmáticos e fiel a valores essenciais, definidos na Constituição. Se quisermos influir de fato no desenho de uma nova ordem, não bastará enunciar conceitos e enfatizar valores. Teremos que juntar forças com outros países com os quais tenhamos afinidades de interesses e situações. Isso inclui uma ativa política de cooperação com nações da América Latina e Caribe, da África, do Mundo Árabe, entre outros. Supõe especialmente um grande empenho na integração de nossa região, seja em sua dimensão estritamente sul-americana, seja em escala latino-americana e caribenha, aplicando, com as devidas adaptações, o critério da “geometria variável”, tão ao gosto dos analistas e diplomatas franceses ao tratar da integração europeia. Somente dessa forma, lograremos influir de forma efetiva sobre o rumo das indispensáveis reformas pelas quais o sistema internacional terá que passar, para enfrentar os desafios geopolíticos implícitos no axioma de Graham Allison e para tratar das grandes questões globais que ameaçam o bem-estar e até mesmo a própria sobrevivência da Humanidade, como frequentemente destacado por pensadores como Noam Chomsky e Richard Falk.
Tudo isso supõe obviamente que voltemos a ser um país normal, governado com critérios racionais e humanistas, de preferência um país com um governo progressista, capaz de enfrentar, de forma democrática e plural, os imensos desafios do desenvolvimento, que, no nosso caso, passam pela superação da vergonhosa desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira e pelo convívio saudável com os bens que a natureza nos confiou e cujo legado temos o dever de transmitir a nossos descendentes.
Notas
[1] A Organização Mundial do Comércio, sucessora do GATT, foi criada pelo Acordo de Marraquexe, que selou a conclusão da Rodada Uruguai. De modo notável, a nova organização abarcou, além do comércio de bens – objeto do GATT –, transações em serviços e aspectos de propriedade intelectual (TRIPS na sigla em inglês). De forma algo sub-reptícia, por meio da interpretação de um artigo preexistente no GATT, o tema de investimentos foi objeto de um acordo específico (TRIMS, na sigla em inglês).
[2] “Multilateralismo assertivo” foi a expressão com que os Estados Unidos buscaram caracterizar iniciativas que correspondiam a seu interesse estratégico, levadas a cabo, sempre que possível, por meio de instrumentos multilaterais.
[3] O analista político norte americano Graham Allison (2020) se refere à inevitabilidade do conflito entre Estados Unidos e China, valendo-se de conceitos inicialmente expostos pelo grande historiador grego sobre a Guerra do Peloponeso.
[4] Na ocasião, os líderes dos quatro países emitiram declaração com um título que, com visão retrospectiva, soa altamente irônica: “Visão para o Iraque e seu Povo”.
[5] Em 20 de março de 2003, o Presidente Lula, empossado há menos de três meses, em rede nacional de rádio e TV, criticou duramente a decisão do presidente Bush de invadir o Iraque. Antes e depois dessa data, o Brasil manteve consultas no mais alto nível sobre o tema com França e Alemanha e, em nível de ministros, com a Rússia.
[6] Hubert Védrine, ministro das Relações Exteriores francês do governo socialista, utilizou, a partir de 1999, o conceito de hyperpuissance para definir a situação geopolítica e a atuação internacional dos Estados Unidos.
[7] O acrônimo BRICs (com “s” minúsculo) foi inventado por Jim O’Neill, então economista-chefe do Goldman Sachs em 2001, mas tornou-se uma realidade na segunda metade da década, com a criação do Fórum, que, a partir de 2011 passou a incluir, além de Brasil, Rússia, Índia e China, a África do Sul (daí BRICS, com “s” maiúsculo). Em setembro deste ano, O’Neill, a propósito do vigésimo aniversário da criação do acrônimo, escreveu artigo, postado no site Project Syndicate, em que deixa transparecer sua decepção com os resultados concretos do grupo (O'Neill 2021). Ainda assim, reconhece seu potencial para ações conjuntas, sobretudo dentro do G-20. Os gestos que resultaram na criação dos BRICS como um foro de cooperação e coordenação política estão relatados em artigo a ser publicado em breve pelos organizadores do evento virtual IV BRICS Seminar on Governance & BRICS Cultural Exchange Forum 2020, realizado em dezembro daquele ano.
[8] O conceito de “responsabilidade de proteger” foi consagrado nas Nações Unidas pela Resolução A/60/1 de 2005. Para uma discussão sobre o tema, inclusive a proposta brasileira de “responsabilidade ao proteger”, ver o artigo de Antonio Patriota (2020): “The United Nations at 75: Multilateralism at a Crossroads”.
[9] Ver notadamente o texto intitulado “Reflexões sobre a Geopolítica depois da Pandemia” (Amorim 2020a), originalmente publicado pela revista Carta Capital e incluído na coletânea organizada pela Fiocruz, “Diplomacia da Saúde e Covid-19”, sob a organização de Paulo Marchiori Buss e Luiz Eduardo Fonseca (Amorim 2020b). Foi também reproduzido em vários idiomas no site Progressive International, sob o título “A Ordem Mundial Pós-Pandemia” (Amorim 2020c).
[10] Algo semelhante ocorreu no Iraque, depois que a ONU, diante do fato consumado, decidiu que poderia participar da reconstrução. Nosso compatriota Sergio Vieira de Melo seria a vítima fatal desse processo de responsabilidades compartilhadas, marcado por ambiguidades perigosas.
[11] Diário da Câmara dos Deputados de 25/08/1961, pág. 6133-6138. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/discursos-em-destaque/serie-brasileira.
[12] Entre outros encargos difíceis, mas honrosos, coube ao Brasil, no início de 1999 – e como desdobramento da presidência brasileira do Conselho de Segurança – presidir três painéis sobre desarmamento e consequências humanitárias das sanções impostas pela ONU ao regime de Saddam Hussein. Desses painéis resultou a resolução que transformou os parâmetros e os métodos de ação da UNSCOM e sua substituição pela UNMOVIC, cuja condução tocou ao sueco Hans Blix, até que os acontecimentos do 11 de setembro inviabilizassem sua continuidade.
[13] Alguns dos fatos mais importantes que ilustram a maneira como a ação diplomática do Brasil era vista por variados países, inclusive as principais potências, estão narrados em diferentes capítulos do meu livro “Teerã, Ramalá e Doha. Memórias da Política Externa Ativa e Altiva” (Amorim 2015).
Referências Bibliográficas
Allison, Graham. 2020. A Caminho da Guerra: Os Estados Unidos e a China conseguiram escapar da Armadilha de Tucídides? (1ª edição). Rio de Janeiro: Intrínseca.
Amorim, Celso. 2015. Teerã, Ramalá e Doha. Memórias da Política Externa Ativa e Altiva, 2ª edição (2018). São Paulo: Benvirá.
Amorim, Celso. 2020a. “Reflexões sobre a geopolítica depois da pandemia”. Carta Capital, 15 de junho de 2020. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/reflexoes-sobre-a-geopolitica-depois-da-pandemia/.
Amorim, Celso. 2020b. “Reflexões sobre a Geopolítica depois da Pandemia”. Diplomacia da saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho [online], organizado por Paulo Marchiori Buss & Luiz Eduardo Fonseca. Série Informação para ação na Covid-19. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19, Editora FIOCRUZ. https://doi.org/10.7476/9786557080290.
Amorim, Celso. 2020c. “Uma Ordem Mundial Pós-Pandemia”. Progressive International, 09 de julho de 2020. https://progressive.international/wire/2020-07-09-a-post-pandemic-world-order/pt.
Fukuyama, Francis. 1992. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco.
O'Neill, Jim. 2021. “Will the BRICS Ever Grow Up?”. Project Syndicate, 16 de setembro de 2021. https://www.project-syndicate.org/commentary/brics-20-years-of-disappointment-by-jim-o-neill-2021-09.
Patriota, Antonio. 2020. “The United Nations at 75: Multilateralism at a Crossroads”. The Cairo Review of Global Affairs, outono de 2020. https://www.thecairoreview.com/the-un-at-75/the-united-nations-at-75-multilateralism-at-a-crossroads/.
Recebido: 24 de setembro de 2021
Aceito para publicação: 16 de dezembro de 2021
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