Em 2025, a presidência brasileira do BRICS se dá em um contexto de crise global. O bloco representa um exercício criativo e pragmático de diplomacia no Sul Global, oferecendo alternativas influentes e inovadoras para enfrentar os dilemas e desafios contemporâneos com voz reforçada e capacidade de articulação internacional.
Proponho como pontos de partida, para o atual momento da presidência brasileira do BRICS, em 2025, os de um mundo em crise e o de que o bloco constitui um exercício criativo de diplomacia muito útil para os dias atuais.
A premissa do mundo em crise nos assalta a cada momento, no celular ou em outras telas por onde nos chega a informação em tempo real: falo da proliferação dos conflitos armados em curso no mundo, das guerras na Ucrânia, Palestina, Mianmar e Sudão ao drama cotidiano da espiral de violência das gangues no Haiti. De acordo com programa de dados sobre conflitos da universidade sueca de Uppsala, em 2023 foram registrados conflitos armados em 59 países, o maior da série histórica, iniciada em 1946. Essa escalada de violência e de descontrole, que apresenta uma tragédia humanitária prolongada e sem solução à vista na Palestina, apesar dos reiterados apelos e condenações da comunidade internacional à ação militar do governo de Israel na região, evidencia a crise do multilateralismo no campo da paz e da segurança. Em encontro recente, em Madri, de países comprometidos com a solução de dois Estados para o conflito no Oriente Médio, que atualmente vitima milhares de civis inocentes na Palestina, lembrei que ninguém poderá alegar ignorância, agora ou no futuro, quanto às atrocidades e agressões que têm sido cometidas cotidianamente não apenas em Gaza, mas também na Cisjordânia.
A Organização das Nações Unidas e seu Conselho de Segurança mostram-se incapazes de promover reformas voltadas a assegurar uma representatividade em sintonia com a realidade geopolítica do século XXI e a oferecer respostas eficazes aos desafios do momento. A arquitetura de segurança pós-Segunda Guerra Mundial dá claras mostras de esgotamento e requer reformas profundas. Da mesma forma, a recente adoção de medidas comerciais unilaterais pelos Estados Unidos, o uso de tarifas como arma e o risco latente de uma guerra comercial global põem em risco um sistema multilateral de comércio que já se encontrava em crise profunda. A perda de relevância política da Organização Mundial do Comércio e o esvaziamento dos instrumentos que detinha para fazer valer as regras multilateralmente acordadas, em processos anteriores à crise atual, abriram caminho para que a escalada em curso pudesse ocorrer, sem qualquer custo político ou econômico para os envolvidos.
No campo social, o otimismo que cercou o advento da revolução tecnológica digital, na virada do século, deu lugar ao pessimismo e à preocupação pelo efeito altamente nocivo, nos planos social e político, da desinformação por meio das plataformas de redes sociais. Os “engenheiros do caos”, na definição do autor Giuliano da Empoli (2019) em obra de referência sobre a conversão das redes em arma política a serviço de movimentos extremistas em sociedades democráticas, vêm trabalhando de modo sistemático para pôr em xeque a ordem democrática por meio da desinformação e de campanhas de ódio.
Para a segunda premissa, a do exercício criativo da diplomacia, basta uma breve referência à origem do acrônimo, que se limitava a uma formulação teórica do economista Jim O'Neill, do banco Goldman Sachs, no artigo Building Better Global Economic BRICs (com s minúsculo), de novembro de 2001. Ao se referir aos então chamados “mercados emergentes” Brasil, Rússia, Índia e China, e à tendência – confirmada nos anos seguintes – de que ocupariam participação crescente no PIB mundial, O'Neill criou o acrônimo e defendeu a tese de que era necessária uma reconfiguração do G7 para abrir espaço para esses novos protagonistas, liderados pelo crescimento expressivo da China. Para o autor, um novo desenho institucional do G7 seria passo indispensável para uma melhor coordenação global no campo econômico.
A tese de O’Neill em favor dessa reforma não prosperou no interior do G7. Mas ensejou, na diplomacia dos quatro emergentes citados, um diálogo político que começou à margem da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2006, com a primeira reunião, no nível de ministros de Relações Exteriores. O estreitamento do diálogo nas reuniões seguintes identificou, naquele contexto internacional, uma oportunidade de coordenação no mais alto nível entre os quatro países. Em sintonia com a visão de futuro do presidente Lula para a realidade internacional, o embaixador Celso Amorim, então ministro das Relações Exteriores, foi protagonista ao longo de toda essa construção. A cúpula de chefes de Estado do BRIC em Ecaterimburgo, na Rússia, em 2009, e a posterior incorporação da África do Sul, no ano seguinte, foram decorrências naturais desse processo de aproximação, que consolidou o atual acrônimo BRICS, com o S maiúsculo representando a África do Sul.
A heterogeneidade do grupo, em aspectos relevantes como peso econômico, tamanho de população e formato de sistemas políticos, apontada inicialmente pelos críticos como obstáculos intransponíveis para uma coordenação eficaz, foi um dado levado em conta desde o princípio nesse esforço criativo de diálogo diplomático.
Essa fórmula de equilíbrio e de flexibilidade, que prescindiu até agora de estruturas fixas, como um secretariado, foi a marca da consolidação do BRICS como voz relevante no cenário internacional e como mecanismo de promoção do intercâmbio de experiências e da cooperação entre os países-membros. A fundação, pelos cinco membros, do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), com sede em Xangai e foco no financiamento de projetos e soluções adaptadas às realidades dos países-membros, conferiu ao grupo um instrumento relevante de apoio na área financeira, capaz de apoiar o aprofundamento da cooperação. A cúpula do BRICS em Fortaleza, em julho de 2014, foi o palco da assinatura do acordo que criou o banco.
Com 120 projetos já aprovados e um montante total de US$ 40 bilhões em financiamentos concedidos, o NDB, atualmente presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff, despertou o interesse de outros países em desenvolvimento que não integravam o BRICS e abriu a possibilidade de participação desses países. Bangladesh, Egito, Emirados Árabes Unidos e, mais recentemente, a Argélia somaram-se ao banco como membros. Os projetos aprovados incluem áreas essenciais em matéria de desenvolvimento, como infraestruturas de transporte e saneamento, proteção ambiental e energia renovável.
DESAFIOS DO CRESCIMENTO
O êxito inicial do BRICS como espaço de coordenação entre países em desenvolvimento teve como decorrência natural, nos últimos dois anos, o debate e a deliberação sobre a ampliação do número de países-membros. A manifestação de interesse de mais de 30 países em somar-se ao grupo impunha essa discussão. Na cúpula de Joanesburgo, em 2023, deliberou-se em favor de convites que resultaram na adesão, como membros plenos, do Irã, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e, em momento posterior, da Indonésia. A Arábia Saudita, também formalmente convidada, tem participado de parte das atividades, mas ainda não oficializou sua adesão como membro pleno.
No ano passado, sob a presidência russa, a cúpula de Kazan marcou a admissão de uma nova modalidade de membros, a de parceiros do BRICS, que resultou na incorporação de Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Nigéria, Malásia, Tailândia, Uganda, Uzbequistão e, mais recentemente, o Vietnã.
A presidência brasileira do BRICS, neste ano, tem como uma de suas responsabilidades adaptar o funcionamento dos trabalhos a essa nova composição, o que vem ocorrendo já a partir da reunião ministerial de chanceleres, em abril deste ano, no Rio de Janeiro, da qual participaram os membros plenos no primeiro dia, e somaram-se os parceiros no segundo dia dos trabalhos.
No formato original, o número reduzido de participantes conferia maior flexibilidade, já que os líderes dos cinco membros podiam sentar-se e deliberar em torno de uma mesa-redonda. A ampliação agrega novas demandas em matéria de tempo e de formato das reuniões, além de uma construção de consensos mais complexa. Por esse motivo, aos novos membros foram apresentadas, ainda como parte do processo de adesão, linhas básicas de consenso que já haviam sido consolidadas no BRICS, como critérios a serem endossados por eles como parte do processo de acessão. Entre essas linhas estavam os documentos e declarações do bloco firmados até então, o apoio à posição do BRICS no debate sobre a reforma das instituições de governança global, em especial a Organização das Nações Unidas (ONU) e seu Conselho de Segurança, e o compromisso de não apoiar sanções a países-membros do BRICS, caso essas não tenham sido aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU.
A sintonia fina da construção de consensos no formato ampliado vai requerer um tempo de adaptação, mas a primeira reunião de chanceleres da presidência brasileira já indicou uma grande coincidência de pontos de vista na quase totalidade dos assuntos. Com isso, o BRICS continuará a falar com uma só voz, a partir de agora reforçada pelo peso ampliado de seus 21 integrantes, entre membros plenos e parceiros. A expansão fortaleceu o BRICS como plataforma para responder aos desafios da atualidade e do futuro, entre eles a defesa da diplomacia e do multilateralismo, cuja reforma e fortalecimento já não podem mais esperar. Somente uma ação coletiva rápida e eficaz pode reverter o atual quadro de debilidade das instituições internacionais.
Nesse novo contexto, sem perder de vista sua responsabilidade na adaptação institucional e de funcionamento para as deliberações, o Brasil estabeleceu as prioridades de sua presidência, enfocadas em avanços concretos em matéria de cooperação e de concertação política diante de um desafiante cenário global. Mudou o rótulo que nos caracteriza, de “países emergentes” para “Sul Global”, mas não a natureza dos desafios que devemos enfrentar e que se acumularam nos últimos anos diante da inação da comunidade internacional.
O BRICS expandido tem diante de si o desafio da cooperação como ferramenta para a promoção do desenvolvimento e da superação de problemas ainda derivados da pobreza e da desigualdade no interior de suas sociedades. E, no plano global, apresenta-se como voz credenciada do chamado “Sul Global” em favor de mudanças e respostas novas a uma era de crises convergentes e ameaças existenciais ao planeta provocadas pela ação humana, como a da mudança climática. Como credenciais, vai muito além do peso populacional, territorial e da representatividade regional. Além de reunir cerca de metade da população e da produção energética do planeta, os membros plenos do BRICS têm uma participação de 23% dos fluxos de comércio e da ordem de 39% do PIB global.
A presidência brasileira estabeleceu como prioridades o aprofundamento da cooperação, em especial na área de saúde, a concertação de posições em matéria das discussões sobre a mudança do clima, no contexto da COP30, e o desenvolvimento de instrumentos de facilitação de comércio e investimentos entre os membros do bloco. A obtenção de avanços concretos nessas áreas tem sido buscada de modo sistemático, para que seja chancelada pelos líderes por ocasião da reunião de cúpula do BRICS, em julho no Rio de Janeiro.
Ainda que a formulação inicial de Jim O’Neill, de um G7 ampliado e mais representativo, não se tenha concretizado conforme o autor propôs em seu artigo, o fortalecimento do BRICS permitiu que a coordenação ocorresse em outra instância, a do G20, integrado por 19 países e dois blocos regionais, a União Europeia e a União Africana – esta incorporada no ano passado, durante a presidência brasileira.
Criado em 1999, em resposta às crises econômicas globais verificadas a partir daquele período, o fórum congrega os cinco membros da composição inicial do BRICS e todos os do G7. Essa interação entre os dois blocos tem permitido o esforço de coordenação sobre os rumos da economia global preconizado por O’Neill e ampliado para o tratamento dos demais desafios, como o da crise climática, o do enfrentamento da fome e da pobreza e o da reforma da governança global.
A atuação dos países do BRICS em foros como o G20 desmente na prática o estereótipo segundo o qual se tratava de uma formulação com viés antiocidental. O absurdo do estereótipo, derivado de análises apressadas ou interessadas, não resiste ao fato de que nenhum bloco que reúna integrantes com a trajetória diplomática e o perfil de países como o Brasil, a África do Sul e a Índia pode ser considerado contrário ao Ocidente. Por geografia, por laços culturais e por trajetória, o Brasil está claramente identificado com o Ocidente, mas não abre mão de seu papel crítico em relação à atual desordem mundial, nem tampouco da sua habilidade de se relacionar com todos os países do mundo que desejem ter-nos como parceiro.
A presidência brasileira do G20, no ano passado, demonstrou serem viáveis a construção de consenso e o lançamento de iniciativas concretas nessas áreas, como foi o caso da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que já reúne a adesão de cerca de 150 parceiros, entre eles mais de 80 países. Evidenciou também a importância do papel de países como o Brasil na aproximação de posições, em um foro no qual nem todos os países dispõem de canais bilaterais para resolver diferenças entre si. O atual contexto de acirramento de antagonismos e de tensões geopolíticas não impediu que os consensos fossem alcançados e que iniciativas concretas como a Aliança fossem implementadas. Da mesma forma, o foco no pragmatismo e na obtenção de resultados concretos em áreas prioritárias, que tem orientado os trabalhos da presidência brasileira do BRICS, demonstrará a viabilidade da cooperação e do diálogo político no bloco, a partir de agora em seu formato ampliado.
A diplomacia criativa e pragmática no Sul Global apresenta, assim, com uma voz reforçada e com capacidade de repercussão e influência, novos caminhos para o enfrentamento dos dilemas e das ameaças de um mundo em crise.
Referências
da Empoli, Giuliano. 2019. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. Brasil: Vestígio Editora.
O’Neill, Jim. 2001. “Building Better Global Economic BRICs.” Global Economics Paper No. 66. New York: Goldman Sachs. https://www.goldmansachs.com/insights/archive/archived-research/building-better.html.
Recebido: 5 de junho de 2025
Aceito para publicação: 13 de junho de 2025
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