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Entrevistas

“O Brasil aposta no diálogo, no consenso e na força do Sul Global como motores de transformação positiva da ordem internacional”

Mauricio Lyrio conversou com os editores da CEBRI-Revista

O embaixador Mauricio Carvalho Lyrio é secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores e sherpa do Brasil no BRICS.

Antes de assumir o cargo atual, foi embaixador do Brasil na Austrália (2021-2023) e no México (2018-2021). No Itamaraty, ocupou, entre outros, os cargos de chefe do gabinete do ministro das Relações Exteriores (2016-2017), secretário de Planejamento Diplomático (2013-2016), ministro-conselheiro da Missão do Brasil junto à ONU em Nova York (2011-2013) e porta-voz do Ministério das Relações Exteriores (2008-2010). Ele também serviu nas embaixadas do Brasil na China, Argentina e nos Estados Unidos. Foi secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros de 2023 a 2025, função na qual atuou como sherpa do Brasil no G20.

Nascido no Rio de Janeiro, é bacharel em Comunicação Social e mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). 

Fonte: Ministério das Relações Exteriores.

Segue a entrevista concedida por escrito aos editores da CEBRI-Revista.

 

A presidência brasileira do BRICS em 2025 tem como lema “Fortalecendo a cooperação do Sul Global por uma governança mais inclusiva e sustentável”, e estrutura-se em torno de seis prioridades temáticas. Como o Brasil pretende articular estas diferentes áreas, que vão da saúde global à governança da inteligência artificial, em uma narrativa política coerente, capaz de traduzir as demandas do Sul Global em propostas concretas dentro do BRICS e nos fóruns multilaterais mais amplos?

Mauricio Lyrio: Creio que o BRICS tem uma dupla vocação. A primeira, que está em sua raiz, é a defesa do multilateralismo e da reforma da governança global. Partimos do diagnóstico de que as instituições criadas no pós-1945 estão enfraquecidas em decorrência de problemas de representatividade e do alijamento de muitos atores relevantes de seus processos decisórios.

A segunda vocação é mais tangível: estimular o aprofundamento da cooperação entre seus integrantes, nas mais diversas frentes. São muitos os exemplos: saúde, educação, infraestrutura, agricultura, laços econômicos e empresariais, entre outros. Desde sua primeira cúpula, em 2009, o agrupamento vem ampliando significativamente suas áreas de atuação. 

Tendo em conta essa dupla vocação, a presidência brasileira tem buscado iniciativas que contribuam para o reforço do multilateralismo e da governança global, mas que também tragam benefícios tangíveis para nossas populações.

Daí estarmos nos concentrando em dois eixos principais: a Cooperação do Sul Global e as Parcerias BRICS para o Desenvolvimento Social, Econômico e Ambiental. Esses eixos se desdobram, por sua vez, em seis áreas prioritárias: Cooperação em Saúde Global; Comércio, Investimento e Finanças; Combate à Mudança do Clima; Governança da Inteligência Artificial; Reforma da Arquitetura Multilateral de Paz e Segurança; e Desenvolvimento Institucional do BRICS.

Diria que essas são as prioridades do momento, nas quais pretendemos entregar resultados neste período de um ano de presidência brasileira – na verdade menos que isso, pois no segundo semestre de 2025 estaremos dedicados principalmente à COP30.

Embora tematicamente diversas, essas áreas estão interligadas pela urgência de uma atuação coordenada entre os países. Todas enfrentam desafios significativos em um cenário internacional marcado por tendências de erosão do multilateralismo e ascensão do unilateralismo. 

A pandemia de Covid-19 evidenciou que ameaças à saúde global não podem ser enfrentadas de forma isolada. O mesmo se aplica à crise climática e à necessidade de garantir padrões éticos e inclusivos no desenvolvimento de novas tecnologias, como a inteligência artificial. São desafios transversais, que exigem respostas concertadas e multilaterais.

Todas as iniciativas concretas caminham lado a lado com o papel do BRICS na defesa do multilateralismo e da reforma da governança global, de modo a tornar as instituições internacionais mais eficazes em sua área de atuação. Não é aceitável que, 80 anos após o fim da Segunda Guerra, ainda tenhamos instituições que carecem de adequada representação do Sul Global.

Munido desse espírito, o BRICS sustenta a necessidade de reformar a Organização das Nações Unidas, em particular seu Conselho de Segurança, e as instituições de Bretton Woods. Defende a importância de um sistema multilateral de comércio baseado em regras claras e previsíveis, em contraposição a medidas unilaterais. Temos que adequar todas essas instituições à realidade do século XXI, assegurando sua legitimidade, eficácia, relevância e capacidade de responder aos desafios globais de forma efetiva.

Ao articular essas diversas frentes em uma narrativa política coerente, a presidência brasileira busca consolidar o BRICS como plataforma de ação concreta e convergente em prol de uma governança global mais inclusiva, sustentável e representativa. O Brasil aposta no diálogo, no consenso e na força do Sul Global como motores de transformação positiva da ordem internacional. Não buscamos antagonismo, nem protagonismo. Buscamos, sim, equilíbrio e instituições justas e eficazes.

A ampliação do BRICS com novos membros como Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes levanta questões importantes sobre coesão política, legitimidade e capacidade de ação conjunta do grupo. Recentemente, o Brasil anunciou a adesão da Indonésia como membro pleno. Como a presidência brasileira pretende lidar com essa nova configuração ampliada, sobretudo no que diz respeito à definição de critérios para a entrada de futuros membros e ao impacto da expansão na identidade política do bloco?

ML: Entendo a ampliação do BRICS precisamente como um atestado do desejo de mais cooperação entre países em desenvolvimento e da capacidade de atuação do grupo. O interesse de outros países é uma afirmação da relevância que o grupo adquiriu desde o seu surgimento, consolidando-se como uma voz influente no cenário internacional.

A expansão tem, portanto, um impacto positivo sobre a identidade política do BRICS. Desde sua origem, o grupo sempre foi caracterizado por uma diversidade significativa – de localização geográfica, estruturas políticas, dimensões populacionais, culturais e religiosas. Essa diversidade nunca foi um obstáculo, porque o que realmente traz coesão ao BRICS são seu compromisso compartilhado com o desenvolvimento por meio da cooperação, a promoção das pautas do Sul Global e a defesa da reforma das instituições de governança global. A entrada de novos membros que comungam desses princípios fortalece ainda mais essas agendas.

No que se refere à definição de critérios para a adesão de novos membros, esse tema já foi abordado na presidência sul-africana, em 2023, quando os países-membros acordaram, por consenso, os princípios, padrões, critérios e procedimentos que norteiam o processo de expansão, tais como apoio à reforma da ONU e o equilíbrio geográfico. 

Nosso desafio, agora, é organizar o BRICS de maneira a permitir a integração plena dos novos participantes. Nesse sentido, uma das prioridades da presidência brasileira é o desenvolvimento institucional do BRICS, o que inclui a atualização dos Termos de Referência do grupo, para que reflitam sua nova configuração, critérios para a rotação das presidências anuais e uma discussão mais detalhada sobre as formas de engajamento dos países parceiros.

A proposta de criação de uma secretaria permanente do BRICS tem sido debatida como forma de institucionalizar mais o grupo e dar maior continuidade às suas iniciativas. Entretanto, há receios de que isso leve à burocratização do fórum ou à concentração de influência entre determinados membros. Qual é a posição do Brasil sobre essa proposta e como a presidência brasileira pretende conduzir esse debate em 2025? 

ML: A proposta de criação de um secretariado permanente para o BRICS já foi mencionada em algumas ocasiões, especialmente diante da crescente complexidade do grupo, que hoje conta com mais de 100 mecanismos de cooperação.

No entanto, entendemos que o BRICS, por sua natureza flexível, tem funcionado bem sem a necessidade de uma estrutura permanente centralizada. As presidências anuais rotativas têm dado conta de fazer as vezes de secretariado do grupo. Não parece haver interesse político suficiente entre os membros para avançar nessa direção no momento atual. 

Dou como exemplo o que ocorre com o G20, que também conta com um grande número de grupos de trabalho e grupos de engajamento, mas prescindiu de uma secretaria permanente por entender que as presidências rotativas já desenvolveram meios flexíveis de preservar a memória institucional e garantir a continuidade dos trabalhos desenvolvidos. No BRICS estamos buscando maneiras de aperfeiçoar a memória institucional do grupo. 

Nossa prioridade em 2025 será fortalecer a coordenação entre os mecanismos já existentes e aprimorar a governança de forma pragmática e eficiente, mantendo a flexibilidade que sempre caracterizou o grupo.

A condução desse debate, se e quando ocorrer, será feita de maneira inclusiva e gradual, sempre com base no diálogo e na busca de consenso, que são características do BRICS.

A discussão sobre a desdolarização das trocas econômicas e comerciais entre os membros do BRICS tem ganhado destaque nos últimos anos, especialmente diante das sanções unilaterais e do uso geopolítico do sistema financeiro internacional. Como a presidência brasileira do BRICS em 2025 pretende abordar esse tema? Há espaço para avanços concretos na promoção de mecanismos financeiros alternativos, como o uso de moedas nacionais ou sistemas de pagamento próprios, respeitando as distintas realidades macroeconômicas dos membros?

ML: Esse é um tema que merece ser bem esclarecido. Não estamos tratando no momento da “desdolarização” de trocas comerciais, nem tampouco da criação de uma moeda comum para o bloco.

O foco da presidência brasileira em 2025 é, na verdade, fomentar as relações comerciais intrabloco por meio do desenvolvimento de mecanismos de pagamento mais eficientes, conforme estabelecido nas Declarações de Joanesburgo (2023) e Kazan (2024). Ou seja: buscamos reduções de custos nas nossas transações nas áreas de comércio, finanças e investimentos. 

Para esse fim, a Força-Tarefa sobre Pagamentos dos BRICS, criada em 2020, tem trabalhado no aprimoramento de sistemas que facilitem transações entre os países-membros, promovendo maior integração financeira. Atualmente, essa iniciativa é coordenada pelo Banco Central do Brasil, que busca impulsionar soluções alinhadas às prioridades estabelecidas pelo bloco. A Força-Tarefa tem promovido seminários e análises sobre alternativas para o aprimoramento dos sistemas de pagamento, com apoio do BRICS Think Tank Network for Finance (BTTNF), coordenado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Entre as discussões em andamento, destaca-se a necessidade de maior interoperabilidade entre os sistemas de pagamentos nacionais, garantindo transações mais rápidas e eficientes. 

O uso de moedas locais para pagamentos já ocorre bilateralmente entre alguns países do BRICS. A ampliação desses mecanismos pode reforçar os vínculos financeiros no bloco. 

Está sendo discutida, ademais, a possibilidade de criação de um repositório de dados financeiros compartilhado entre os bancos centrais dos BRICS para monitoramento das transações e maior transparência de fluxos financeiros.

Importante observar que as iniciativas do BRICS na área financeira têm o objetivo de complementar o papel de organizações como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, com vistas a uma ordem econômica internacional justa e equilibrada. São as mesmas motivações que levaram à criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Acordo de Reserva Contingente (CRA), em 2014.

O NDB possui um capital autorizado de US$ 100 bilhões, dos quais US$ 52,7 bilhões já foram integralizados. Até o momento, o banco aprovou 96 projetos, totalizando US$ 32,8 bilhões em financiamentos. Tem buscado expandir o financiamento em moedas locais, com vistas a reduzir custos e riscos dos projetos apoiados. Em sua Estratégia Geral para 2022-2026, estabeleceu a meta de realizar 30% de seu financiamento total nas moedas locais dos países-membros, o que tem levado o banco a emitir mais títulos em moedas locais, o que ajuda a dinamizar os mercados de capitais dos países-membros.

O CRA, por sua vez, é um mecanismo de apoio mútuo entre os países do BRICS, com um fundo de US$ 100 bilhões, destinado a fornecer assistência financeira em caso de pressões de liquidez ou crises cambiais.

A presidência brasileira tem buscado aprimorar os mecanismos e iniciativas já existentes, bem como explorar formas de reduzir custos de transação e, dessa forma, dinamizar as relações econômicas entre os países do agrupamento.

Em 2025, o Brasil terá, simultaneamente, a presidência de dois processos multilaterais que conjugam agendas decisivas para a estabilidade das relações internacionais: o BRICS e a COP30. Diversas críticas, no entanto, apontam que alguns membros do BRICS, como Rússia, Índia e China, possuem uma matriz energética intensiva em carbono e uma postura relativamente conservadora na agenda climática, sobretudo no que se refere à redução do uso de combustíveis fósseis. Como a presidência brasileira do BRICS pretende articular posições nesse tema, de forma a estimular resultados construtivos na COP30?

ML: Antes de tratar da pergunta, cabe uma ressalva inicial: não foram os países em desenvolvimento que nos trouxeram a esta situação de emergência climática. Não faz sentido, por isso, apontar o dedo para os países do BRICS. Todos os seus integrantes têm comprometimento com a agenda climática, não sem deixar de buscar uma visão equilibrada do desenvolvimento sustentável, que conjugue aspectos econômicos, sociais e ambientais. Devemos sempre lembrar, igualmente, dos compromissos ainda não cumpridos em matéria de financiamento da parte dos países que mais emitiram CO2 historicamente e da necessidade de atenção ao princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas.

A agenda de clima no BRICS, sob a presidência brasileira, foi formulada como peça estruturante da COP30. A conexão entre os dois processos é, porém, mais ampla do que se costuma pensar. O BRICS não servirá apenas como plataforma de articulação de posições negociadoras na COP30. Sua função principal será produzir soluções concretas capazes de alavancar, em Belém, a ação decisiva contra a mudança do clima.

A COP30 deve ser entendida como o ponto de chegada de um arco estratégico lançado ainda no início do governo do presidente Lula. Esse arco, compreendendo a atuação do Brasil na COP28 e na COP29 e a presidência brasileira do G20 e no BRICS, foi definido por um objetivo diplomático prioritário: revitalizar o multilateralismo climático e permitir sua transição a um novo paradigma. 

Em meio à aceleração da mudança do clima e à universalização de seus impactos, é urgente passar das tratativas à implementação, das promessas à ação. A COP30 será o marco dessa virada. Caberá à nossa presidência do BRICS, por sua vez, oferecer ao mundo o protótipo do paradigma a ser inaugurado em Belém.

Tendo esse objetivo em vista, a agenda de clima do BRICS foi concebida como uma agenda para a ação. Sua principal proposta consiste em uma declaração específica de líderes sobre finanças climáticas, por meio da qual lançaremos um plano de trabalho ambicioso, de alto perfil político, para alavancar o financiamento a esforços de mitigação e adaptação dentro do bloco. Também estudaremos opções de arranjos inovadores de propriedade intelectual, como pools de patentes, para garantir a difusão ampla e rápida de tecnologias necessárias ao combate à mudança do clima. 

A agenda inclui, por fim, o estabelecimento de Laboratório do BRICS, baseado em modelagem econômica, para promover políticas comerciais convergentes com objetivos ambientais, mas sem veleidades protecionistas, e facilitar respostas coletivas a medidas unilaterais de outros países; e a adoção de princípios para que a contagem das nossas emissões seja feita por métricas justas, inclusivas e transparentes. 

Como se nota, o foco de nossa agenda está dirigido às lacunas de apoio internacional deixadas por países desenvolvidos. Mostraremos ao mundo soluções viáveis e replicáveis para superar os gargalos econômicos, financeiros e tecnológicos que dificultam a ação climática, inclusive a transição energética e a substituição do uso de combustíveis fósseis. A diversidade dos países do BRICS – diversidade política, econômica e ambiental, inclusive em composição de matrizes energéticas – é uma síntese representativa do Sul Global. Por isso, o bloco poderá mostrar o caminho a uma transição efetiva, porque justa e inclusiva, que é o objetivo da COP30.

Entrevista enviada por mídia escrita em 29 de outubro de 2024.

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