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Seção Especial

Conter e engajar

Como o Brasil deve lidar com Trump 2.0

Resumo

O artigo propõe uma estratégia de "conter e engajar" como resposta diplomática brasileira ao segundo governo Trump. Argumenta-se que o Brasil deve adotar uma postura assimétrica, com firmeza seletiva e abertura tática, reforçando sua representação em Washington e explorando oportunidades estratégicas do relacionamento bilateral em cinco diferentes eixos – geopolítico, comercial, institucional/eleições, regional e tecnologia/infraestrutura. O Brasil deve com isso evitar a ancoragem das negociações na questão comercial para aumentar as chances de sucesso.

Palavras-chave:

política externa; Trump; Brasil-EUA; diplomacia; contenção.

O retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos (EUA) representa um desafio complexo para o governo Lula, com repercussões em cinco frentes principais: geopolítica, comércio, política regional, tecnologia e eleições. Em cada uma dessas áreas, o Brasil enfrenta pressões crescentes e é frequentemente tratado pela administração Trump como um adversário ou como um ator irrelevante. Neste contexto, este artigo propõe uma estratégia transversal chamada de “conter e engajar”, que combina firmeza em algumas áreas com disposição para negociar em outras. 

O argumento central é que não é possível negociar com Trump apenas sobre tarifas. Como o mercado norte-americano é muito maior que o brasileiro, uma negociação limitada a esse tema tende a favorecer o país mais poderoso. Menos ainda pode o Brasil permitir que a questão da interferência americana em seus assuntos internos – especialmente as ameaças ao Supremo Tribunal Federal – se torne o ponto central das negociações, pois isso comprometeria qualquer possibilidade de resolução da crise no curto ou médio prazo. É, portanto, necessário ampliar e aprofundar a agenda bilateral para incluir múltiplos temas simultaneamente. 

Argumenta-se que, em termos geopolíticos, o Brasil deve manter uma postura não alinhada, mas deve abrir negociações em outras áreas, como a Ucrânia. Na área tecnológica, o país deve regular a inteligência artificial e a infraestrutura de dados com base nos interesses nacionais, mas se engajar seletivamente com empresas americanas e promover normas multilaterais para a soberania digital. No comércio, deve preparar mecanismos de defesa e retaliação, ao mesmo tempo que busca um diálogo político de alto nível com os representantes de Trump. No plano regional, o Brasil precisa buscar convergências em temas como Venezuela, Haiti, combate ao crime organizado e imigração, para atrair a atenção das autoridades americanas. No campo eleitoral, o país deve responder com firmeza às ameaças à democracia brasileira decorrentes da aliança entre Trump e Bolsonaro. 

Além disso, depender apenas da embaixada em Washington mostrou-se insuficiente para contrabalançar a narrativa dominante de Jair Bolsonaro entre as autoridades americanas. Torna-se essencial, portanto, elevar a Vice-Presidência como âncora institucional da presença brasileira nos EUA. A conclusão é que nem a retaliação total nem a acomodação pura são eficazes ao lidar com Trump. O Brasil deve evitar ao máximo a ancoragem temática em comércio ou eleições e ampliar a agenda. Escalar com um ator mais poderoso pode gerar sérios custos para a economia brasileira. O caminho mais viável para o Brasil é adotar uma estratégia de “conter e engajar” – combinando confronto e cooperação de forma taticamente flexível, conforme o tema em questão.

TRUMP E LULA – UMA HISTÓRIA DE PRESSÃO CRESCENTE

Em julho de 2025, o governo Trump anunciou uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos. Em uma carta endereçada ao governo brasileiro, Trump alegou que estava em curso no Brasil uma “caça às bruxas” contra seu amigo Jair Bolsonaro. Acrescentou ainda que o Supremo Tribunal Federal brasileiro havia “emitido centenas de ordens SECRETAS e ILEGAIS de censura” contra plataformas de redes sociais norte-americanas, ameaçando-as com multas milionárias e expulsão do mercado brasileiro. Por fim, argumentou que o enorme déficit comercial dos Estados Unidos com o Brasil precisava ser corrigido – uma alegação inacreditável, considerando que os EUA mantiveram um superávit histórico em bens e serviços com o Brasil, totalizando mais de US$ 450 bilhões nos últimos 15 anos. O ataque de Trump marca um dos pontos mais baixos em uma relação que já dura mais de dois séculos. Poucos dias antes, Trump já havia ameaçado indiretamente o Brasil ao publicar em sua rede social uma mensagem afirmando que qualquer país que se alinhasse às políticas do BRICS seria severamente penalizado com tarifas. A mensagem veio em meio à realização da cúpula anual do BRICS no Rio de Janeiro.

Desde o início do governo Trump 2.0, está em curso em diversos países um intenso debate sobre a melhor forma de lidar com o presidente dos Estados Unidos. Incertezas quanto às capacidades e intenções norte-americanas, bem como discussões sobre diferentes opções estratégicas para enfrentar a situação, alimentam uma indústria de opinião lucrativa entre analistas e especialistas da academia, de empresas, bancos, governos e da mídia ao redor do mundo. Esse debate tende a se polarizar em torno de duas estratégias mutuamente excludentes: engajar e negociar, ou retaliar e conter as decisões voláteis de Trump. Este artigo defende uma abordagem mais matizada: a estratégia de “conter e engajar” como forma de mitigar os efeitos negativos da política externa de Trump sobre o Brasil.

A administração Trump impõe desafios simultâneos ao governo Lula em cinco frentes principais: geopolítica, comércio, política regional, tecnologia/infraestrutura e eleições. Em todas essas áreas, a pressão sobre o Brasil tem aumentado gradualmente. Em nenhuma delas o país é tratado como aliado preferencial ou parceiro estratégico. Ao contrário, Lula é tratado como adversário ou como ator irrelevante em todas. O espaço de negociação está se estreitando, e as retaliações políticas e comerciais se tornam cada vez mais custosas.

É justo dizer que Trump se tornou o maior desafio de política externa para o governo Lula, especialmente devido ao alinhamento estreito entre a ala Make America Great Again (MAGA) do Partido Republicano e a família Bolsonaro. Em janeiro de 2023, Trump afirmou: “O presidente Bolsonaro ama o Brasil acima de tudo. Ele é um homem maravilhoso e tem meu apoio completo e total!!!”. Trump não é apenas um desafio internacional para o Brasil – ele representa também uma ameaça doméstica com implicações potenciais para as eleições nacionais de 2026. É amplamente reconhecido que a oposição bolsonarista busca ativar seus laços com o movimento MAGA para desestabilizar o governo Lula por todos os meios, inclusive prejudicando setores-chave da economia brasileira.

Além disso, figuras como Elon Musk demonstraram interesse explícito em interferir nas eleições brasileiras. Musk publicou em sua rede social, no dia 2 de setembro de 2024: “O atual governo brasileiro gosta de usar o manto da democracia enquanto esmaga o povo sob suas botas”. E em 15 de novembro de 2024, após comentários depreciativos da primeira-dama do Brasil: “Eles vão perder a próxima eleição”. A maior ameaça à democracia brasileira hoje não vem da Rússia de Putin, mas do radicalismo que emana da Washington trumpista.

Mas, como dizia Lênin, o que fazer? O Brasil deve engajar e negociar, ou retaliar e confrontar Trump? Deve seguir o exemplo da China, adotando uma postura mais dura, ou imitar a abordagem pragmática do México, identificando divisões internas na administração Trump e explorando essas fissuras em benefício de Brasília?

Este artigo defende que o governo Lula deve adotar uma estratégia de duplo trilho – contenção e negociação – com o objetivo de mitigar os impactos econômicos e eleitorais negativos do segundo governo Trump. Uma estratégia de confronto total implicaria custos políticos e econômicos enormes – uma opção viável apenas para grandes potências como China ou Rússia. Por outro lado, a negociação aberta, sem mecanismos de pressão ou alavancagem, não é respeitada por Trump, que geralmente só responde à força. O Panamá serve como um alerta: logo no início de suas negociações com Trump, o governo panamenho atendeu às exigências dos EUA e removeu prontamente empresas chinesas da Zona do Canal – movimento incentivado por Marco Rubio. Ainda assim, Trump não se deu por satisfeito e reiterou seu desejo de controle total sobre o canal. O Panamá ficou sem fichas de barganha – um erro estratégico.

Assim, o conceito que melhor capta essa ambivalência entre confronto e negociação é o de “conter e engajar” – a coexistência entre firmeza e abertura. Para que essa estratégia funcione, no entanto, o Brasil precisa agir com assertividade e, ao mesmo tempo, negociar em múltiplos domínios e com diferentes setores do governo norte-americano. Uma estratégia híbrida, que combine elementos da assertividade chinesa com o pragmatismo mexicano, pode ser explorada de forma produtiva pela diplomacia brasileira. Além disso, é essencial evitar o “ancoramento” da relação bilateral em um único tema – como tarifas ou eleições. Reduzir e hierarquizar a relação a uma só questão limita a flexibilidade e a margem de manobra do Brasil. A chave para o sucesso está no equilíbrio delicado entre força e diplomacia. O tom e os movimentos táticos devem ser calibrados em cada uma das frentes. O argumento central é que conter ou retaliar os Estados Unidos de forma ampla é politicamente equivocado e que uma política de engajamento puro – embora preferível do ponto de vista comercial – dificilmente será correspondida por Washington.

Vale destacar que a estratégia de “conter e engajar” não é nova. A Ostpolitik (“política oriental”) da Alemanha Ocidental, liderada pelo chanceler Willy Brandt na década de 1970, é um dos exemplos mais sofisticados e influentes de política externa que combinou contenção com engajamento. Seu principal arquiteto, Egon Bahr, resumia a filosofia com a fórmula Wandel durch Annäherung – ou “mudança por meio da aproximação”. A lógica da Ostpolitik era clara: conter a expansão soviética e a instabilidade no bloco oriental, mantendo o firme alinhamento da Alemanha Ocidental com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Comunidade Europeia, ao mesmo tempo que se engajava com a Alemanha Oriental, a URSS e os países do Pacto de Varsóvia por meio de reconhecimento diplomático, tratados de não agressão, cooperação econômica e acordos humanitários. 

A TEORIA DA CONTENÇÃO E DO ENGAJAMENTO

Em seu clássico de 1987, John Lewis Gaddis explorou os fundamentos conceituais e os dilemas estratégicos da política de contenção dos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Ele introduz o paradoxo duradouro da estratégia: o equilíbrio entre minimizar riscos e minimizar custos. Segundo Gaddis, essa tensão define a lógica da estratégia e está na base das decisões de grande estratégia. Ele distingue entre duas formas principais de contenção: simétrica e assimétrica. A contenção simétrica responde aos desafios do adversário onde e quando eles surgem, com o objetivo de evitar a escalada, mas geralmente com custos elevados. Já a contenção assimétrica permite que o Estado escolha o momento, o local e a forma de resposta, conservando recursos, mas aceitando riscos maiores. A estratégia do Brasil diante do governo Trump deveria se inspirar nesse segundo tipo.

Em uma revisão das opções políticas disponíveis para Estados que enfrentam uma crise iminente, Matlary (2018) identifica quatro opções estratégicas principais que podem ser adotadas diante de ameaças adversárias: dissuasão, contenção, coerção e confronto. A dissuasão consiste na tentativa de impedir que um adversário tome uma ação indesejada por meio de ameaças críveis de retaliação. Sua eficácia depende da crença do adversário de que os custos de agir superam os benefícios. A contenção, por sua vez, é uma estratégia de longo prazo que busca limitar ou neutralizar a influência de um adversário sem confronto direto. Pode envolver alianças diplomáticas, pressão econômica e presença militar, todas desenhadas para impedir a expansão da influência, sem forçar a obediência imediata. A coerção vai além, buscando ativamente forçar o adversário a mudar de comportamento ou interromper uma ação específica. Isso pode envolver ameaças ou uso limitado de força, sanções econômicas ou outras medidas punitivas. A coerção é mais confrontacional e inerentemente arriscada – exige não apenas a capacidade de agir, mas também a disposição para escalar o conflito caso o oponente resista. O confronto é a opção final e mais extrema, envolvendo o uso direto da força militar. O confronto é geralmente custoso, imprevisível e, por isso, considerado um último recurso.

O que faltava na revisão feita por Matlary era o conceito de engajamento. Em uma definição rigorosa, Resnick (2001) argumenta que o engajamento é a tentativa de influenciar o comportamento de um Estado-alvo por meio da ampliação abrangente de contatos bilaterais em múltiplos domínios – diplomático, militar, econômico e cultural. Ao contrário da política de apaziguamento, que envolve concessões territoriais ou de influência, o engajamento busca construir interdependência e incentivar mudanças de comportamento. Ele é iterativo, condicional e sujeito a retirada estratégica caso o alvo não responda. Para que o engajamento seja eficaz, três condições precisam ser atendidas: (1) níveis iniciais baixos de contato bilateral; (2) necessidades materiais ou simbólicas significativas por parte do Estado-alvo; e (3) o alvo deve valorizar o engajador, seja como adversário ou como parceiro necessário. A relação entre Lula e Trump parece se encaixar como uma luva nesta opção estratégica. 

Dado o alto custo das estratégias de coerção ou confronto, a contenção se mostra uma abordagem mais apropriada para o caso brasileiro. Por outro lado, a contenção, por si só, seria insuficiente para lidar com Trump, um presidente que tende a escalar tensões e atacar – inclusive países com maior capacidade de resistência, como China ou União Europeia. Além disso, a contenção pode ser ineficaz por não gerar incentivos positivos para que Trump veja o Brasil de Lula, ainda que como adversário, como um país capaz de oferecer ganhos políticos e econômicos alinhados aos seus interesses imediatos. Por isso, este artigo defende uma estratégia dual de contenção e engajamento. O engajamento tem o potencial de gerar os tipos de ganhos políticos que Trump busca em outras áreas das relações internacionais.

Adicionalmente, a profunda assimetria entre os Estados Unidos e o Brasil – em termos econômicos, militares e diplomáticos – torna inviável e até prejudicial a adoção de estratégias centradas exclusivamente no confronto, na escalada ou na coerção. Nesse contexto, o engajamento cumpre uma dupla função: oferece ao Brasil um arcabouço para preservar sua agência e iniciativa nas relações bilaterais, ao mesmo tempo que aproveita áreas de interesse mútuo para evitar isolamento diplomático ou punições econômicas.

LULA E TRUMP – AS FRENTES E AÇÕES

Para operacionalizar a estratégia de “conter e engajar”, é essencial desagregar as múltiplas dimensões pelas quais a administração Trump pode afetar o Brasil. A complexidade dessa relação bilateral – marcada por assimetrias, tensões ideológicas e arenas políticas sobrepostas – exige respostas diferenciadas em cinco domínios-chave. Em vez de adotar uma postura monolítica, o Brasil deve adaptar sua estratégia às características específicas de cada frente. A análise a seguir está estruturada em torno de cinco eixos críticos – geopolítico, comercial, tecnológico/infraestrutura, regional e eleitoral – cada um com seus próprios desafios, riscos e oportunidades para uma ação calibrada.

Frente geopolítica

Na frente geopolítica, o governo Lula enfrenta um cenário particularmente desafiador. A administração Trump busca desmantelar alianças tradicionais e desvalorizar instituições multilaterais como as Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) – uma posição que contradiz diretamente a tradição diplomática brasileira de defesa do multilateralismo. Ainda assim, há áreas isoladas de possível convergência. A posição do Brasil favorável às negociações de paz na Ucrânia, por exemplo, alinha-se parcialmente com a visão de Trump, especialmente diante do cansaço crescente do Ocidente com a guerra prolongada. Sinais vindos dos EUA de que o Brasil poderia contribuir com tropas de paz, no caso de um cessar-fogo, representam uma oportunidade para Brasília reforçar seu papel de mediador honesto na crise ucraniana – um papel já reconhecido por Putin.

Contudo, a crescente tensão entre os Estados Unidos e a China coloca o Brasil em uma posição delicada. A proximidade econômica e diplomática do Brasil com Pequim pode ser usada contra o país por setores alinhados a Trump. No âmbito do BRICS, as críticas de Trump à agenda de desdolarização também geram atritos. Ao sediar a Cúpula do BRICS, o Brasil sinalizou que não pretende transformar o grupo em uma plataforma antiocidental, mas, sim, enfatizou seu alinhamento com Índia e África do Sul, reafirmando a heterogeneidade do bloco. Ainda assim, uma reação agressiva por parte dos EUA poderia empurrar o Brasil ainda mais para o bloco asiático. O Brasil deve deixar claro que não é aliado nem da China nem da Rússia, mas busca ganhos econômicos, tecnológicos e comerciais dentro do BRICS que o Ocidente já não consegue oferecer. Além disso, o país deve enfatizar que sua presença (assim como a de Índia e África do Sul) impede que o BRICS se torne uma aliança antiocidental.

A política climática é outra fonte importante de tensão com os Estados Unidos. Mais uma vez, Trump retirou os EUA do Acordo de Paris, e negacionistas climáticos dominam sua nova administração. No entanto, muitos atores domésticos norte-americanos – como governos estaduais, cidades e grandes empresas – continuam fortemente comprometidos com uma agenda climática progressista. As autoridades brasileiras devem manter o diálogo com esses atores subnacionais e não governamentais para mostrar que, ao lado de outros parceiros pró-clima, o Brasil permanece comprometido com os objetivos do Acordo de Paris, independentemente das mudanças na política federal dos EUA. Fortalecer essas alianças também pode enviar à administração Trump o sinal de que as demandas brasileiras têm apoio influente dentro dos próprios Estados Unidos.

A questão geopolítica que mais deveria preocupar Brasília, no entanto, é a crise palestina. A posição do Brasil é percebida em Washington como claramente pró-palestina. Embora esse tema ainda não tenha ganhado protagonismo nas discussões bilaterais Brasil-EUA, não é implausível imaginar que, dada a relação próxima entre Trump e Netanyahu, países vistos como anti-Israel venham a ser alvo dos Estados Unidos. Evitar a contaminação das relações bilaterais por esse tema deve ser uma prioridade para Brasília – ainda que a inclinação bolsonarista de usar essa questão contra Lula possa vir a ser abraçada também por Washington.

Em resumo, a frente geopolítica está repleta de desafios, embora a crise ucraniana possa oferecer uma abertura para melhorar a relação entre Trump e Lula. A prioridade deve ser enfatizar áreas de convergência e impedir que temas espinhosos dominem a agenda bilateral. As demais frentes – comércio, regional e eleitoral – podem ajudar a aliviar a pressão desse terreno geopolítico mais conflituoso.

Frente comercial

Na frente comercial, as políticas protecionistas de Trump representam uma ameaça direta a setores estratégicos da economia brasileira, como já ficou evidente em episódios anteriores de imposição tarifária. Embora o Brasil não tenha sido um dos alvos principais na primeira rodada de tarifas, a segunda onda deixou claro o ressurgimento da agressividade comercial trumpista. Isso exige uma resposta coordenada e de alto nível por parte do governo brasileiro. A disputa interna entre o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) sobre quem deve liderar o tema tarifário precisa ser superada: o vice-presidente deveria liderar uma delegação integrada – com respaldo técnico e político – capaz de negociar com firmeza e com o apoio do Itamaraty.

Paralelamente, o Brasil deve engajar ativamente os atores domésticos dos Estados Unidos que tendem a ser prejudicados pela agenda protecionista de Trump. Importadores agrícolas, fabricantes industriais dependentes de matérias-primas brasileiras e câmaras de comércio pró-livre comércio podem servir como aliados importantes na oposição a medidas que prejudiquem as relações econômicas bilaterais. Muitos desses atores – especialmente em estados com fortes laços comerciais com o Brasil – têm capacidade política para pressionar o Congresso e influenciar a postura da Casa Branca. Ao fortalecer os vínculos com esses grupos, o Brasil pode amplificar sua voz dentro do sistema político norte-americano e ajudar a construir resistência interna às políticas protecionistas. Essa rede de aliados setoriais e subnacionais deve ser vista como parte crítica da diplomacia comercial brasileira no cenário Trump 2.0.

O Brasil deve combinar uma postura defensiva – incluindo instrumentos de retaliação prontos para uso, como o novo mecanismo de defesa comercial aprovado pelo Congresso – com um esforço contínuo de negociação. Além disso, deve contestar as políticas tarifárias norte-americanas na OMC, mesmo que tal ação tenha um caráter mais simbólico. Ainda assim, isso faria parte de um esforço mais amplo de pressão multilateral envolvendo dezenas de países – um movimento do qual o Brasil deve participar. A ideia aqui, no entanto, é evitar que a relação bilateral se ancore exclusivamente no tema das tarifas, já que o Brasil se encontra em posição mais frágil nesse campo.

Frente regional

No plano regional, o contraste entre os governos Bolsonaro e Lula revela uma mudança significativa com relação ao tema mais sensível da região: a crise venezuelana. Bolsonaro alinhou-se completamente à política de “pressão máxima” contra a Venezuela, enquanto Lula tem buscado reposicionar o Brasil como mediador e defensor da estabilidade regional. Ao que tudo indica, Trump voltará a favorecer uma estratégia de pressão total. Ainda assim, existe algum espaço para coordenação entre os dois governos no caso venezuelano, especialmente após a revogação das licenças da Chevron – uma decisão influenciada por Marco Rubio. Lula pode explorar esse espaço de coordenação, ainda que de forma indireta, apresentando o Brasil como um ator moderado que trabalha em conjunto com Washington pela abertura política gradual na Venezuela.

Outra possível área de coordenação entre Brasília e Washington é o Haiti. O agravamento da situação no país voltará a exigir uma resposta regional. A experiência prévia do Brasil em missões de paz, somada à relutância de Trump em investir diretamente em países vizinhos em crise, pode reforçar os esforços brasileiros para convencer as autoridades norte-americanas de que o Brasil pode ser um parceiro valioso na condução de uma solução para a crise haitiana.

Por outro lado, a questão migratória tem potencial para tensionar severamente as relações bilaterais. No entanto, a recente decisão de Lula de criar um grupo de trabalho conjunto com o sistema migratório dos EUA parece ser um passo na direção correta. É fundamental evitar a polarização emocional em torno da deportação de migrantes brasileiros e assegurar que o governo continue atuando de forma discreta para proteger os direitos básicos dessas pessoas. O comportamento errático de Gustavo Petro, da Colômbia – que recuou após as ameaças de Trump – ilustra o quão sensível é essa questão para a nova administração norte-americana. Uma ação coordenada com Washington sobre o tema migratório pode abrir um canal valioso de diálogo com o governo Trump. É importante lembrar que a imigração é uma das prioridades centrais de Trump, e qualquer país que coopere nesse campo tende a ser visto com bons olhos pela Casa Branca.

O combate ao narcotráfico é outra prioridade para o governo Trump. Embora, na visão trumpista, o tema esteja profundamente associado à imigração, a Casa Branca intensificou seus esforços contra o crime organizado na América Latina, especialmente no México e na Venezuela. Em visita recente a Brasília, uma autoridade sênior dos EUA mencionou a ideia de classificar o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas. Essa proposta foi veementemente rejeitada pelo governo brasileiro, já que abriria caminho para medidas duras por parte dos EUA contra o Brasil. No entanto, à medida que o crime organizado brasileiro se torna um fenômeno global – com ramificações significativas na Europa e nos Estados Unidos – a cooperação já existente entre Washington e Brasília pode e deve ser ampliada. Esse tema tem potencial para se tornar uma via de benefícios mútuos importantes.

O cenário regional está, sem dúvida, marcado por uma crescente polarização. A disputa por influência dentro da Organização dos Estados Americanos (OEA) – evidenciada pela eleição entre o candidato do Suriname, apoiado por Lula, e o candidato paraguaio, apoiado por Trump – mostrou que há rivalidade direta entre os dois governos dentro do sistema interamericano. Além disso, o apoio explícito de Trump a Javier Milei, na Argentina, sinaliza que os EUA pretendem impulsionar lideranças populistas de direita na América do Sul, enfraquecendo o Mercosul e dividindo a região. O Brasil precisa responder com firmeza, mas também com cautela, sempre buscando preservar sua relação com a Argentina. Atrair o governo Milei para mais perto de Brasília é o melhor antídoto contra a estratégia disruptiva de Trump no Cone Sul.

Assim, na frente regional, quatro temas podem ajudar a melhorar a relação bilateral – Venezuela, Haiti, combate ao narcotráfico e imigração. A construção de uma agenda positiva com Washington sobre esses assuntos, especialmente a migração, pode fortalecer a posição brasileira em outras frentes. Reduzir a competição dentro da OEA e trabalhar de forma mais próxima com o governo Milei também podem se mostrar úteis.

Frente tecnológica e de infraestrutura

Um novo campo de vulnerabilidade – e também de potencial influência – é o setor tecnológico. Trump já buscou anteriormente restringir investimentos chineses em inteligência artificial (IA) e centros de dados (data centers) no exterior. O Brasil está se tornando um campo de disputa nessa guerra tecnológica, especialmente à medida que busca atrair investimentos para sua transformação digital. Por outro lado, o crescente interesse do governo norte-americano e das big techs americanas em temas como terras raras e investimentos em centros de dados no Brasil pode abrir uma nova avenida de cooperação entre os dois países

Não há dúvida que o Brasil deve garantir que centros de dados, serviços em nuvem e infraestrutura de IA sejam regulados por leis nacionais e não fiquem sujeitos a vetos unilaterais ou tentativas de vigilância por parte dos EUA. Porém, ao mesmo tempo, o país poder oferecer oportunidades de investimento atreladas a parcerias público-privadas, e inclusão digital pode atrair empresas norte-americanas – sob os termos definidos pelo Brasil.

Outra área promissora de cooperação entre Brasília e Washington é a das terras raras. O Brasil possui a segunda maior reserva de elementos de terras raras do mundo, atrás apenas da China. Nos últimos anos, tem havido um aumento significativo de investimentos estrangeiros no país, buscando transferir a produção e o refino desses minerais para fora da esfera de controle chinesa. O apoio financeiro recente do governo norte-americano a uma operação canadense de terras raras no estado de Minas Gerais é uma indicação clara de que o Brasil tem potencial para se tornar um fornecedor confiável desses componentes críticos para a economia tecnológica dos EUA. Diversificar as fontes de fornecimento de terras raras é uma prioridade para a administração Trump, e a colaboração com o Brasil pode se transformar em um instrumento estratégico importante para alcançar objetivos comuns e benefícios mútuos.

Frente eleitoral

A frente eleitoral talvez seja a mais sensível para o governo Lula. Trump, como símbolo global do populismo autoritário e da desinformação, inspira e sustenta uma rede transnacional de extrema-direita na qual a família Bolsonaro desempenha um papel central. As alianças entre figuras como Steve Bannon e o bolsonarismo, bem como o papel de plataformas como o X (antigo Twitter), sob o comando de Elon Musk, na disseminação de narrativas anti-establishment, representam ameaças diretas à democracia brasileira. As eleições de 2026 podem ser contaminadas por fake news, tentativas de deslegitimar o sistema eleitoral e esforços coordenados para minar a confiança nas instituições – todos impulsionados por grupos ligados ao governo Trump.

Diante disso, o Brasil deve agir com firmeza. As ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), articuladas por Bolsonaro e seus aliados, precisam ser enfrentadas com rigor, inclusive por meio da cooperação internacional com países que enfrentam ameaças semelhantes – especialmente na Europa. Embora a defesa institucional da democracia recaia majoritariamente sobre o Judiciário, o Poder Executivo não pode permanecer passivo. Tanto a retórica quanto a prática do governo brasileiro devem deixar claro que interferências externas e tentativas de desestabilização não serão toleradas. Nesse sentido, as iniciativas de Lula para ampliar o diálogo sobre essas ameaças com parceiros europeus – especialmente com a França de Macron e a Espanha de Sánchez – são oportunas e essenciais.

De fato, a frente eleitoral é a dimensão mais delicada da relação bilateral, pois afeta diretamente o equilíbrio de poder interno no Brasil. Nesse campo, a posição do Brasil deve ser intransigente. Não se pode permitir qualquer forma de interferência – direta ou indireta – no processo eleitoral. Lula deve buscar ativamente se integrar à aliança antipopulista que começa a ganhar força na Europa.

Aqui está um resumo das diferentes estratégias disponíveis ao governo Lula – contenção pura, engajamento puro e conter e engajar: 

Tabela 1: Contenção vs. Engajamento diante de Trump 2.0

Tab2

Tabela 2: Convergências e divergências.

CONCLUSÕES

É fundamental fortalecer a representação e a presença do Brasil em Washington. Desde o início do governo Trump, o presidente Lula optou deliberadamente por evitar contato direto com Trump e seus aliados próximos. Embora essa postura possa ter sido politicamente prudente no contexto doméstico, ela criou um vácuo que foi rapidamente preenchido por Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro. Como resultado, é provável que a principal – senão única – fonte de informação de Trump sobre a dinâmica política interna brasileira seja Eduardo Bolsonaro, que oferece uma visão altamente partidarizada.

Essa situação é profundamente problemática e deve ser enfrentada com urgência. Confiar apenas na atuação da embaixada brasileira em Washington tem se mostrado insuficiente para contrabalançar essa narrativa distorcida. Por isso, é essencial elevar o nível do engajamento político com os Estados Unidos por meio da designação de um interlocutor de alto escalão que possa representar o governo Lula com autoridade e clareza.

O vice-presidente Geraldo Alckmin está bem posicionado para assumir esse papel. Ao empoderá-lo como figura central nas negociações com Washington, o Brasil poderá coordenar suas demandas, garantir coerência na comunicação e apresentar uma imagem mais equilibrada e crível do cenário político brasileiro. Esse movimento estratégico também pode abrir novos canais de diálogo e restaurar uma relação mais institucional e construtiva com os Estados Unidos. Para tanto, será necessário que o Brasil desenvolva capacidades de resposta rápida, avaliações situacionais precisas e uma coordenação eficaz entre diferentes órgãos do Estado – especialmente o Itamaraty, o MDIC, o Judiciário e a Presidência da República.

A relação do Brasil com a administração Trump exigirá, mais do que nunca, sofisticação tática e flexibilidade estratégica. Diante de um ator imprevisível, que combina populismo autoritário com impulsos protecionistas e agendas desestabilizadoras, o Brasil não pode se dar ao luxo de adotar nem uma postura de confronto total nem uma de submissão e apaziguamento. O caminho mais viável – e necessário – é o da ação calibrada, seletiva e assimétrica: retaliar quando necessário e engajar quando possível.

Essa estratégia transversal de “conter e engajar” se justifica não apenas pela assimetria de poder entre os dois países, mas também pela natureza fragmentada dos desafios impostos por Trump. Em cada um dos cinco eixos analisados – geopolítico, comercial, regional, tecnológico/infraestrutura e eleitoral – há ameaças específicas, mas também oportunidades táticas. Não se trata de aplicar uma abordagem única e uniforme a toda a relação, mas, sim, de atuar em múltiplas frentes por meio de movimentos coordenados – ora para dissuadir, ora para cooperar.

Geopoliticamente, o Brasil deve manter seu compromisso com a multipolaridade ao reforçar seu papel de mediador neutro, particularmente em conflitos como a guerra da Ucrânia, evitando ao mesmo tempo um alinhamento excessivo com qualquer grande potência, inclusive a China. Isso implica resistir às pressões para ancorar sua política externa exclusivamente no BRICS, usando, em vez disso, seu capital diplomático para construir pontes e oferecer alternativas credíveis nos fóruns multilaterais.

Nas frentes comercial e regional, o Brasil se beneficiaria de uma postura de firmeza tática, sem ruptura. Em termos comerciais, isso envolve uma postura defensiva, com prontidão para retaliar diante de medidas protecionistas, combinada com negociações políticas de alto nível para administrar disputas. No plano regional, a estratégia deve evitar cair em dinâmicas polarizadoras. Ao mesmo tempo que permanece atenta à interferência dos EUA na região, Brasília deve manter abertos os canais de cooperação seletiva em temas de interesse comum, como migração, crime organizado, Haiti e crise venezuelana. Essa abordagem equilibrada protege os interesses nacionais sem comprometer a flexibilidade estratégica.

Nos temas sensíveis da tecnologia e da resiliência democrática, a estratégia exige princípios claros e ações assertivas. O Brasil deve regular setores-chave, como inteligência artificial e infraestrutura de dados, com base em seu próprio interesse nacional, permitindo a entrada de empresas norte-americanas. No plano doméstico, deve agir com firmeza contra tentativas de exportação da política estilo MAGA, reforçando as instituições democráticas e coordenando ações com o Judiciário e com parceiros democráticos no exterior. No geral, a estratégia de conter e engajar evita tanto os custos de um confronto total quanto os riscos do apaziguamento diplomático, permitindo ao Brasil navegar em um ambiente internacional volátil com autonomia estratégica.

O engajamento também permite ao Brasil explorar taticamente divisões internas no sistema político dos EUA – em áreas como comércio e clima, por exemplo. Ao se aproximar de interesses econômicos, atores subnacionais ou setores burocráticos menos alinhados ao estilo confrontacional de Trump, o Brasil pode abrir espaço para a cooperação pragmática mesmo diante da hostilidade presidencial.

Ao adotar uma postura mais firme em algumas áreas e maior flexibilidade em outras, o Brasil pode ampliar sua margem de manobra e evitar o ancoramento temático em áreas sensíveis como comércio e eleições. Qualquer forma de ancoragem reduziria automaticamente a flexibilidade estratégica do país e criaria brechas para retaliações cruzadas e escaladas de tensão. Escalar conflitos com um país muito mais poderoso só traria prejuízos à economia brasileira e afetaria profundamente o cenário político interno, pois diversos atores domésticos provavelmente aproveitariam a oportunidade para criticar e enquadrar o presidente Lula. A convivência entre firmeza e abertura é, paradoxalmente, a única maneira eficaz de lidar com a rigidez e a volatilidade de Trump.

Mais do que uma escolha entre confronto e cooperação, o desafio do Brasil diante de Trump 2.0 será um teste de inteligência diplomática. A estratégia de confrontar e engajar é, neste contexto, mais que uma fórmula engenhosa – é um imperativo para a sobrevivência institucional, econômica e democrática. O sucesso dessa abordagem dependerá da capacidade do governo Lula de construir alianças internas e externas, explorar fissuras dentro do campo trumpista e sustentar – em meio ao caos – uma lógica coerente de ação estatal. A arte de conter sem isolar e de dialogar sem se render será, nos próximos anos, a principal medida de sucesso diplomático do Brasil.

Referências Bibliográficas

Gaddis, John Lewis. 1987. “Containment and the Logic of Strategy”. The National Interest 10: 27–38.

Matlary, Janne Haaland. 2018. Hard Power in Hard Times: Can Europe Act Strategically? Cham: Palgrave Macmillan.

Resnick, Evan. 2001. “Defining Engagement”. Journal of International Affairs 54 (2): 551–566.

Recebido: 13 de julho de 2025

Aceito para publicação: 16 de julho de 2025

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