O texto analisa a trajetória e os desafios da hegemonia do dólar como moeda de reserva internacional, destacando as vantagens e os custos associados a esse papel no contexto pós-Bretton Woods. Examina o dilema entre a necessidade de prover liquidez global e a manutenção da confiança na moeda, relacionando esse equilíbrio às transformações econômicas e geopolíticas recentes e à possibilidade de transição para uma nova ordem monetária internacional.
O DÓLAR AMEAÇA
Não há mais dúvida, o predomínio do dólar está ameaçado. Desde o fim da Primeira Guerra, com a crise da libra e do padrão-ouro, o dólar assumiu o papel da principal moeda internacional, o que foi institucionalizado com a conferência de Bretton Woods em 1944, quando os EUA se tornaram definitivamente o país mais poderoso do mundo, tanto em termos econômicos quanto militar e geopolítico.
O que significa ser a moeda reserva mundial? É necessário que atenda a três condições:
O país emissor da moeda reserva mundial tem duas vantagens em relação a todos os demais:
Essas vantagens configuram um “privilégio exorbitante”, na expressão cunhada por Valéry Giscard d'Estaing, quando ministro da Fazenda de De Gaulle, na década de 1960. No entanto, embora até recentemente pouco lembradas, existem também possíveis desvantagens associadas ao fato de ser o emissor da moeda reserva. Estão associadas ao chamado Dilema de Triffin, enunciado originalmente na década de 1950, pelo economista belga Robert Triffin. O Dilema, ou o paradoxo, de Triffin está no fato de que a necessidade de suprir a liquidez internacional, necessária para o bom funcionamento e o crescimento do comércio internacional, exige que o detentor da moeda reserva tenha déficits externos recorrentes e possivelmente crescentes.
Nos primeiros anos do pós-Guerra, com a moeda americana recém-estabelecida como o meio de pagamentos internacional, havia uma escassez de dólares para o resto do mundo. Não havia dólares fora dos Estados Unidos suficientes para financiar a reconstrução da Europa, o crescimento do comércio e o desenvolvimento do sistema financeiro internacional. Como os EUA, os maiores detentores de reservas em ouro e os únicos emissores do dólar, tinham enormes superávits comerciais, não havia oferta suficiente da nova moeda internacional. Os EUA não tinham déficits externos grandes o suficiente para “exportar” os dólares exigidos para o bom funcionamento da economia mundial.
Os planos Marshall, para a reconstrução da Europa, e Dodge, para a do Japão, assim como a criação das instituições financeiras internacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, foram tentativas de dar resposta à insuficiência de crédito internacional em dólares. Para se ter ideia da magnitude dos planos de ajuda internacional dos EUA no pós-Guerra, basta lembrar que chegaram a representar 10% do orçamento fiscal americano no primeiro ano de sua criação. Foram tão relevantes para viabilizar o sistema monetário e cambial do pós-guerra, que o padrão dólar, com taxas de câmbios fixadas em relação ao dólar atrelado ao ouro, ficou conhecido como o Marshall-Dodge fixed-rate dollar standard.
Ao investir, emprestar e expandir sua influência econômica e política no mundo, os EUA passaram a suprir a demanda por liquidez do sistema financeiro internacional. A partir dos anos 1960, e sobretudo com os aumentos dos preços do petróleo pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), na década de 1970, o problema se inverteu, os enormes déficits externos americanos criaram um excesso de oferta de dólares. O resultado foram desvalorização do dólar e pressões inflacionárias nos EUA. Talvez tenham sido os primeiros sinais de que o privilégio exorbitante do emissor da moeda reserva não é ilimitado, impõe condições que precisam ser respeitadas.
O conflito entre a necessidade de atender à demanda mundial por liquidez e a manutenção da confiança na sua moeda exige um equilíbrio potencialmente instável. Para atender à demanda internacional por liquidez, é preciso incorrer em déficits externos, que terminam por minar a confiança na moeda. O desafio é calibrar o déficit externo para atender à necessidade de liquidez mundial, sem provocar escassez ou excesso de oferta da moeda. O risco de se tornar indulgente, de abandonar a necessária disciplina institucional, é alto. A tentação de abusar da capacidade de financiar tanto o desequilíbrio externo, do balanço e pagamentos, como o desequilíbrio interno, o das contas públicas, faz com que, ao longo do tempo, a credibilidade termine por ser abalada.
O primeiro período de grandes desequilíbrios externos, de desvalorização do dólar e de alta da inflação americana, após os choques do petróleo da década de 1970, foi revertido pela dura política de juros conduzida nos anos 1980, com Paul Volcker na presidência do Federal Reserve (Fed). A inflação voltou para os níveis históricos comportados, o dólar se revalorizou e a confiança foi restabelecida, mas a forte alta dos juros teve efeitos colaterais graves. Nas últimas duas décadas do século XX, inúmeros países em desenvolvimento, que tinham se endividado em dólares no período de abundância de crédito internacional, não conseguiram se refinanciar no mercado. Foram obrigados a pedir ajuda ao FMI e, ainda assim, tiveram que declarar moratória.
Às sucessivas crises das dívidas externas, seguiu-se um período de relativa estabilidade. O susto da interrupção do crédito externo levou a grande maioria dos países em desenvolvimento a se tornar superavitários e acumular reservas expressivas. Com a inflação americana sob controle, restabelecida a confiança no dólar, houve uma rápida expansão do comércio internacional. Sob o aparente bom comportamento dos indicadores convencionais, já estava em curso um processo de hipertrofia financeira, que iria desembocar na grande crise de 2008. O crescimento do mercado financeiro em dólares, alimentado internamente pela volta dos déficits orçamentários e externamente pelos déficits comerciais americanos, foi turbinado por uma série de inovações financeiras. A criatividade da banca privada, no desenvolvimento de novos instrumentos de crédito, funcionou como um poderoso multiplicador do crédito nas economias desenvolvidas. Quando a bolha da hipertrofia financeira explodiu, inicialmente no mercado de crédito imobiliário securitizado americano, a crise ameaçou provocar uma profunda depressão, nos EUA e na Europa, e levar de roldão toda a economia mundial.
A Grande Crise Financeira de 2008 deu margem a um intenso debate sobre como reagir para evitar uma verdadeira debacle, que arrastaria a economia mundial para uma depressão profunda. No olho do furacão, o Fed, à época presidido por Ben Bernanke, um acadêmico com relevantes contribuições para a teoria e a prática da política monetária, foi obrigado a tomar decisões audaciosas. A solução adotada, sob riscos legais e reputacionais, foi a de promover uma extraordinária e nunca vista expansão monetária, por meio da aquisição maciça de títulos do Tesouro americano. O experimento, chamado de Quantitative Easing (QE), foi um novo experimento de política monetária que impediu a debacle financeira e escancarou o fato de que, livre da restrição do padrão-ouro, com uma moeda puramente fiduciária, o Fed pode criar moeda à vontade, sujeito apenas às restrições institucionais e legais.
A EROSÃO DAS CONDIÇÕES DE CREDIBILIDADE
O Dilema de Triffin e os ônus incorridos pelo emissor da moeda reserva foram recentemente retomados por Stephan Miran em A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System, de novembro de 2024. O texto de Miran é provavelmente a base conceitual da política econômica do segundo governo Trump. Miran foi, inicialmente, o chairman do Council of Economic Advisors do novo governo Trump e, em seguida, indicado para a diretoria do Federal Reserve no lugar de Adriana Kluger, que se retirou antes do fim de seu mandato.
Segundo Miran, a necessidade de manter déficits externos, para suprir a liquidez internacional, levou à sobrevalorização do dólar, o que, por sua vez, provocou a desindustrialização americana. O ensaio de Miran é um ataque direto às condições necessárias para ser o detentor da moeda reserva mundial. Miran argumenta que o preço da necessidade de déficits externos e de suprir a liquidez internacional é a sobrevalorização do dólar e a perda de competitividade americana. Defende um novo Acordo do Plaza, de 1985, um Acordo de Mar el Lago, para coordenar a desvalorização do dólar. Sob esse ponto de vista, o aumento das tarifas de importações americanas seria uma forma de reduzir o déficit externo, desvalorizar o dólar e cobrar pelo serviço público prestado pelos EUA como emissor da moeda mundial.
Quando o emissor da moeda mundial deixa claro que a considera um ônus e que deseja cobrar pelo serviço prestado, ou até mesmo deixar de prestá-lo, reforça a desconfiança e estimula o surgimento de alternativas. Mas o longo ensaio de Miran, mais de 40 páginas, não para aí. Afirma que o alto percentual de dívida pública americana nas mãos de estrangeiros é mais um fator de valorização do dólar e de volatilidade dos juros nos EUA. Sugere que se deva taxar, e eventualmente alongar de forma compulsória, os títulos públicos americanos nas mãos de não residentes.
As condições, consensualmente aceitas, para que um país seja o emissor de uma moeda internacional foram listadas por David Snow em When the Dollar Falls, no Project Syndicate, agosto de 2025. São elas:
Essas são efetivamente as condições consensuais para ser o emissor da moeda reserva mundial, mas não são suficientes para que um país se torne o emissor da moeda reserva. São condições para um país se manter como o emissor da moeda reserva. A condição necessária para se tornar o emissor da moeda reserva é ter liderança econômica e geopolítica inequívoca. Foi o que passaram a ter efetivamente os EUA depois da Segunda Guerra e da Conferência de Bretton Woods.
Desde o início do século XIX, os EUA usaram o embargo comercial, em diversas outras oportunidades, como arma política, mas o congelamento dos ativos financeiros do Irã, em 1979, após a Revolução Islâmica, foi a primeira vez em que, já como emissor da moeda reserva, controlador do seu sistema de liquidação e custódia, incorporou o uso dessa condição ao seu arsenal de armas políticas. É possível que esse fato tenha acendido o sinal amarelo para alguns países que não mantinham boas relações com os EUA, mas não foi percebido como uma ameaça séria à dominância do dólar. Ao contrário, o controle da inflação, com Paul Volcker nos anos 1980, depois dos choques do petróleo, deu início a uma grande expansão do comércio, à globalização da produção e a um extraordinário aumento da riqueza financeira mundial.
O desmonte das condições que sustentaram o dólar como moeda reserva é mais recente. Tem início em fevereiro de 2022, com o congelamento de US$ 300 bilhões das reservas da Rússia, como represália à invasão da Ucrânia. O bloqueio foi seguido do confisco dos rendimentos das reservas russas, para financiar a Ucrânia na guerra contra a própria Rússia. O golpe de credibilidade do dólar foi reforçado quando, no início do segundo governo Trump, seguiram-se sinais inequívocos de que os EUA estavam decididos a usar sua moeda não mais como bem público, mas como arma política, sem poupar nem mesmo os países mais próximos da sua área de influência.
Desde o confisco das reservas da Rússia, em 2022, e sobretudo a partir do início do segundo governo Trump, em 2025, todas as condições listadas por Snow foram postas em xeque:
A pressão para que o Fed reduza a taxa básica de juros e a aprovação concomitante de um orçamento fiscal com aumento de gastos e cortes de impostos, o “Big, Beautiful Budget”, é percebido como uma ameaça clara à condição (1) – estabilidade macroeconômica, com políticas monetária e fiscal confiáveis e dívida pública sob controle.
As pressões sistemáticas de Trump para que o Fed reduza a taxa básica de juros, os repetidos ataques a Jerome Powell, a quem chamou de “mula teimosa”, assim como a tentativa de destituição da diretora Lisa Cook, sob acusação, sem provas concretas, de fraude na obtenção de empréstimos hipotecários, entram em contradição direta com a condição (2) – ter um Banco Central independente e insulado de pressões políticas espúrias.
A sugestão de Steve Miran, no ensaio citado, de que se deveria taxar os não residentes detentores de títulos públicos, assim como alongar compulsoriamente a dívida carregada por estrangeiros, contradiz diretamente a condição (3) – o livre fluxo de capitais e a inexistência de controles cambiais.
O recente aumento da volatilidade de preços dos títulos públicos americanos, embora o mercado continue líquido e profundo, é o primeiro sinal de alerta em relação à condição (4) – que exige preços transparentes e relativamente estáveis.
Os sucessivos confrontos do executivo de Trump com o Sistema Jurídico, em várias frentes, e os desafios flagrantes ao Judiciário contradizem a condição (5) – ter sistema jurídico confiável e estável.
O confisco das reservas da Rússia, como parte das sanções econômicas, do embargo imposto pelos EUA depois da invasão da Ucrânia, está em flagrante contradição com a condição (6) – não usar a moeda como instrumento de poder geopolítico.
A fúria desorganizadora do presidente americano nada poupa. Das inúmeras frentes em que se propõe a desmontar a ordem estabelecida, o recente ataque à independência do Fed talvez seja a mais crítica e potencialmente perigosa para o dólar e a estabilidade do sistema financeiro internacional.
Mais um fator de ameaça ao dólar, mesmo como moeda nacional americana, foi introduzido com o estímulo ao uso de moedas digitais privadas, as “stable coins”, com o Genius Act, que as definiu como moedas de pagamentos, ou de transações, e não ativos financeiros, sendo impedidas de remunerar, sob qualquer forma, seus detentores. A criação de moedas digitais privadas é estimulada, pois a proibição de remunerar seus detentores equivale à privatização do direito de “seignorage” para seus criadores.
A multiplicação de moedas digitais privadas atreladas ao dólar ameaça tomar espaço do dólar como moeda de pagamentos, nacional e internacional. Sua proliferação irá reduzir a transparência, facilitar a evasão fiscal e as transações ilícitas, além de aumentar o risco de corridas e ataques especulativos, que podem forçar a venda desordenada dos títulos públicos americanos que mantêm como lastro.
O DESAPARECIMENTO DA FRONTEIRA ENTRE AS POLÍTICAS MONETÁRIA E FISCAL
Ao contrário do que muitos ainda acreditam, certamente por ter sido assim no passado e até hoje ensinado nos cursos de Economia, os bancos centrais não “emitem”, ou “imprimem”, moeda. A moeda física está em vias de desaparecer, a expansão monetária ocorre por meio de um crédito em reservas bancárias, ou seja, em moeda corrente, concedido pelo Banco Central, em nome de alguma instituição. No caso do experimento do Quantitative Easing, o Fed passou a comprar, inicialmente, títulos do Tesouro, depois também títulos privados, creditando as reservas no sistema bancário. A inundação do sistema financeiro com reservas bancárias creditadas pelo Fed restabeleceu a liquidez do mercado e interrompeu a queda livre dos preços dos títulos. Como reservas bancárias são moeda, mais precisamente base monetária, houve um aumento da base americana da ordem de 700%, em um período curto de tempo. A crer no que sempre sustentou a teoria econômica, segundo a qual todo aumento de moeda se reflete em aumento proporcional dos preços, ou seja, na inflação, deveria ocorrer um violento surto inflacionário. Não foi o que se viu, ao contrário, a economia continuou, por mais de uma década, perigosamente beirando a deflação.
O experimento do QE desmoralizou a teoria monetária convencional da segunda metade do século XX. Ficou evidente que a expansão monetária não provoca necessariamente inflação. Os mais de dez anos de flerte com a deflação desmoralizaram o velho adágio de que a expansão monetária se transmite aos preços, mas com “longas e imprevisíveis defasagens”, que sempre serviu de desculpa para que os fatos não se curvassem à teoria dominante. Uma expansão monetária nunca vista, que multiplicou a base monetária americana por um fator de sete vezes, não provocou nenhuma inflação, mas, ao contrário, foi seguida por mais de uma década de constante ameaça de deflação, apesar da taxa de juros ter sido mantida pelo Fed no seu lower bound, em torno de zero. Não há defasagens, por mais “longas e variáveis” que sejam, passíveis de serem reivindicadas para explicar a insistência da realidade em contrariar a doutrina.
Diante da insistente ameaça de deflação, apesar da extraordinária expansão monetária, o Fed decidiu que seria necessário dobrar a aposta. Sucessivas rodadas de QE foram feitas, sem qualquer sinal de que a ameaça da deflação estivesse superada. Com a pandemia do início da década de 2020, diante de uma nova ameaça de depressão e deflação, o governo americano resolveu rasgar definitivamente a fantasia de que existiriam limites naturais, técnicos, para a expansão da moeda fiduciária e dos gastos públicos. Mais uma vez, a base monetária, já sete vezes superior à da pré-crise de 2008, foi multiplicada por três. O governo subsidiou todos os setores da economia e enviou cheques de milhares de dólares para todo cidadão americano. Não se poderia conceber um experimento mais próximo do imaginado nos cursos de economia monetária, o de um helicóptero que joga dinheiro do céu, para estimular o consumo e o investimento, recuperar a economia e impedir a deflação. A combinação do extraordinário estímulo monetário e fiscal com uma temporária desorganização da produção, provocada pela pandemia, afastou definitivamente a ameaça da deflação. A economia americana voltou com força. A inflação chegou a beirar os 10% ao ano, antes de voltar a cair.
A década e meia, desde o início do QE, deixou marcas profundas no entendimento das políticas monetária e fiscal. Sabe-se, ao menos desde o artigo seminal de Thomas Sargent e Neil Wallace Some Unpleasant Monetarist Arithmetic, de 1981, que a política monetária e a política fiscal não são independentes, mas interligadas. Com o QE, a fronteira entre a política monetária e a política fiscal ficou definitivamente apagada. A nova política monetária do QE é política fiscal feita, fora do orçamento, pelo Banco Central (BC).
A moeda exclusivamente fiduciária, como é o dólar hoje, se diferencia da moeda com exigência de lastro metálico. Na nomenclatura de Joseph A. Schumpeter, é “puro crédito”. O Banco Central emissor de uma moeda puramente fiduciária pode conceder crédito monetário – isto é, “emitir moeda”, segundo a velha concepção da moeda-papel física, sem qualquer objeção técnica concreta.
O que significa isso? Que a expansão de linhas de crédito monetário do BC, para comprar títulos de dívida pública e privada, como foi o caso dos QEs, assim como para garantir que outros bancos centrais no mundo possam garantir a liquidez na moeda reserva, como foi o caso das linhas estendidas pelo Fed para o Banco Central Europeu (BCE), Banco da Inglaterra (BoE) e outros, não tem nenhuma restrição a priori. Pode ter – e efetivamente teve desde a crise financeira de 2008 – como consequência uma inflação de preços de ativos financeiros, mas que tende a se extravasar também para ativos reais. O resultado é o crescimento desproporcional dos ativos financeiros em relação à renda, ou seja, ao Produto Interno Bruto (PIB) e, consequentemente, um grande aumento da concentração de riqueza. Esse é o ponto do livro de Karen Petrou (2024) e também do recente artigo de Scott Bessent (2025).
Muito se fala na trajetória ascendente, potencialmente insustentável e eventualmente explosiva, da relação entre a dívida pública e o PIB, mas a outra face, o espelho, desta trajetória dívida/PIB é a trajetória da relação ativos financeiros/PIB do setor privado.
A extensão de crédito monetário pelo BC é um gasto público que só difere do gasto público financiado pelo Tesouro, ou seja, da política fiscal, no seu objetivo direto – normalmente socorrer o sistema financeiro em momentos de crise de iliquidez. Ocorre que os BCs têm, cada vez mais, atuado como executores da política monetária/fiscal e, também, como sustenta John Cochrane (2025a; 2025b), de políticas públicas em outras áreas, como o meio ambiente, a política energética e até mesmo a promoção de políticas identitárias. Ou seja, os BCs têm feito política fiscal fora do orçamento. Essa é a crítica que lhes tem sido feita, cada vez mais, por economistas de formação ortodoxa, como Miran, Warsh, financistas, como Bessent, Petrou e outros.
A FACE FISCAL DO DILEMA DE TRIFFIN
Quando se entende e se reconhece que os BCs têm feito política fiscal, o risco descrito pelo Dilema de Triffins, em relação ao déficit externo, se estende para a dimensão do déficit fiscal. A interligação entre os dois déficits – os déficits gêmeos – advém da conhecida identidade da contabilidade macroeconômica.
A oferta de liquidez mundial exige déficits externos do país detentor da moeda reserva mundial. Esse déficit pode ser materializado por meio de uma combinação de moeda valorizada e estímulo fiscal à demanda agregada, ou seja, através da composição da despesa, entre interna e externa, e da extensão da despesa total. A sobrevalorização da moeda pode ser menor para um mesmo déficit externo exigido, se a demanda agregada for mais estimulada por déficits fiscais.
Para conseguir déficits externos com menor sobrevalorização cambial, aumenta-se a despesa total, a “absorção”, C + I + (G – T): Consumo, mais Investimentos, mais o Déficit Fiscal, através de aumento dos Gastos do governo, G, e da redução dos Tributos, T. Junta-se a fome com a vontade de comer, políticos a favor de mais G e setor privado a favor de menos T. O aumento de (G – T), do déficit fiscal, leva ao aumento da relação dívida/PIB e ameaça a credibilidade exigida do emissor da moeda reserva.
O risco da dimensão fiscal do Dilema de Triffin pode ser denominado Dilema de Malan. Pedro Malan, em privado, reconhece – assim com reconheceu Paul Samuelson, em entrevista para um documentário de Mark Blaug sobre Keynes, na década de 1990 – que não existem limites objetivos para o déficit fiscal e o crescimento da dívida pública, mas considera que a explicitação dessa inexistência de limites, a curto e médio prazo, promove a aceleração dos gastos, leva à erosão da credibilidade e à aceleração da inflação.
FRAGMENTAÇÃO OU NOVA MOEDA RESERVA?
Para concluir: uma vez estabelecida como moeda mundial, existe uma forte inércia em relação à moeda reserva internacional, mas o processo de perda de relevância do dólar no cenário comercial e financeiro mundial já está relativamente avançado. É em momentos como estes que cabe lembrar a observação de Rudiger Dornbusch sobre crises cambiais e financeiras: demoram mais para acontecer do que se imagina, mas, quando acontecem, tudo ocorre muito mais rápido do que se poderia prever.
Tentar prever o futuro é tarefa sabidamente inglória, sobretudo em momentos de profundas mudanças tecnológicas e geopolíticas, como os tempos atuais, mas dois cenários alternativos são mais prováveis:
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Recebido: 29 de setembro de 2025Recebido: 29 de setembro de 2025
Aceito para publicação: 15 de outubro de 2025
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