Fernando Lottenberg, primeiro comissário de Monitoramento e Combate ao Antissemitismo da Organização dos Estados Americanos (OEA), é doutor em Direito Internacional Público pela Universidade de São Paulo (USP). Foi presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib). É membro dos Conselhos do Hospital Israelita Albert Einstein, do Museu Lasar Segall, da Fundação Fernando Henrique Cardoso e do Movimento de Defesa da Advocacia, e presidente do Comitê Executivo da Memorial Foundation for Jewish Culture.
Seguem trechos da entrevista concedida aos editores da CEBRI-Revista.
Como o senhor avalia o impacto da guerra em Gaza na comunidade judaica brasileira? Quais têm sido os desafios para essa comunidade em meio a este cenário de conflito?
Fernando Lottenberg: Um recente levantamento da Confederação Israelita do Brasil (Conib), em parceria com a Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp), revelou o tamanho do impacto do conflito por aqui. Desde o dia 7 de outubro de 2023, com o massacre promovido pelo grupo terrorista Hamas no Sul de Israel, houve um salto gigantesco no número de manifestações de ódio. De acordo com a pesquisa, entre 1º de outubro e 31 de dezembro de 2023, foram registradas 1.119 denúncias de casos de antissemitismo, um aumento de quase 800% sobre as 125 denúncias do mesmo período de 2022. Somente em novembro de 2023, foram 18 incidentes por dia, exatamente 18 vezes mais do que a média de 2022.
[M]uitos dos que praticam essas condutas [antissemitas] o fazem julgando toda a comunidade judaica por ações tomadas pelo governo de Israel. Nesse sentido, o grande desafio que se coloca é informar a sociedade de que esse julgamento é generalizante, errado e discriminatório. A comunidade judaica brasileira é plural e diversa, não podendo ser responsabilizada por decisões de governos de Israel.
É claro que esse aumento trouxe receios para a comunidade. Existe uma certa sensação de impunidade para quem pratica atos ou tem comportamentos antissemitas, principalmente no meio virtual. Aqui, vale dizer que, por oportunismo ou por falta de conhecimento, muitos dos que praticam essas condutas o fazem julgando toda a comunidade judaica por ações tomadas pelo governo de Israel. Nesse sentido, o grande desafio que se coloca é informar a sociedade de que esse julgamento é generalizante, errado e discriminatório. A comunidade judaica brasileira é plural e diversa, não podendo ser responsabilizada por decisões de governos de Israel.
A guerra em Gaza tem gerado debates intensos no meio político, nas redes sociais e nas universidades brasileiras. Na condição de comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA) para o Monitoramento e o Combate ao Antissemitismo, como o senhor está lidando com a disseminação de desinformação e promovendo uma compreensão mais equilibrada e informada entre os brasileiros sobre a situação do conflito?
FL: Sem dúvida, uma das bases para o crescimento do antissemitismo que temos vivido, principalmente após o início do conflito, é o desconhecimento, a falta de informação. Temos como prioridade fazer esse tipo de combate, não sobre o conflito em si, mas ao antissemitismo, uma vez que muitos se aproveitam ou justificam seus atos antissemitas por conta do conflito. Este recrudescimento do antissemitismo, em vários quadrantes do mundo, permeia a relação entre o “interno” dos países e o “externo” da política internacional e as suas polarizações. No caso do Brasil, assim como ocorre em outros países, tais como Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido, para exemplificar, essa situação vem propiciando uma percepção de vulnerabilidade para as comunidades judaicas nas quais o antissemitismo não tinha expressão violenta, na experiência mais recente. Não há uma relação de causalidade entre a intensificação do conflito e o aumento do antissemitismo; o que ocorre é que os antissemitas usam o conflito como uma licença para justificar suas condutas preconceituosas e ilegais. E é bom que se diga: antissemitismo – assim como outras formas de racismo – no Brasil é um crime. De outra parte, a educação e a difusão de informações corretas continuam sendo os instrumentos mais relevantes para fazer esse enfrentamento. Nesse sentido, faz parte do nosso trabalho buscar ampliar cada vez mais a adesão de países e Estados-membros da OEA à definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, a IHRA na sigla em inglês. Apesar de não ser uma definição de valor jurídico vinculante, ela serve como balizador importante para que governos, autoridades e a sociedade em geral entendam, identifiquem e combatam casos de antissemitismo. O Brasil é um membro observador da IHRA, e esperamos que, em breve, venha a adotar a definição, como já fizeram mais de 40 países em todo o mundo, sete deles nas Américas.
Aqui no Brasil, sete estados adotaram a definição e estamos empenhados em ampliar essa lista, acreditando que se trata de um passo fundamental para levar mais informação à sociedade. É importante ter claro que o antissemitismo não tem como vítimas apenas os judeus. Trata-se apenas do primeiro passo de construção de um ambiente de intolerância que, no fim da jornada, prejudica outros grupos étnicos, religiosos ou de orientação sexual. O antissemitismo é um fator de corrosão da democracia e um ataque aos direitos humanos.
Paralelamente, temos trabalhado junto às plataformas que operacionalizam as redes sociais, um universo em que a falta de controle ou o controle insuficiente encoraja a disseminação do discurso de ódio. Recentemente, obtivemos uma importante vitória nesta luta contra a desinformação. A Meta, controladora do Facebook, Instagram, Messenger e WhatsApp, atualizou seu Fórum de Políticas no que se refere ao uso do termo “sionista(s)”. A partir de sua implementação, passará a remover mensagens e discursos que usarem essa expressão para se referir a judeus e israelenses com comparações desumanizantes ou negações de seu direito de existência. A Meta disse que removerá conteúdos que ataquem os “sionistas” quando, em vez de fazerem referência a esse movimento político, estiverem gerando estereótipos antissemitas, como alegações de que eles governam o mundo ou controlam a mídia.
Na qualidade de comissário da OEA para o Monitoramento e Combate ao Antissemitismo, uma de minhas tarefas é abastecer a sociedade, as autoridades e os governos com informações que ajudem a construir políticas públicas capazes de frear esse crescimento preocupante de demonstrações de ódio aos judeus.
O senhor acredita que o Brasil pode colaborar para a paz entre israelenses e palestinos e minorar o impacto e a divisão no tecido social brasileiro entre as duas comunidades?
FL: Acredito que sim. Um de nossos principais ativos, até para a formulação e execução de nossa política externa, tem sido a boa convivência, no Brasil, entre as comunidades judaica e árabe locais. O Brasil tem um histórico relevante na região, desde o papel de Oswaldo Aranha como presidente da Assembleia das Nações Unidas que decidiu pela Partilha da Palestina, em 1947, até a participação em Missões de Paz, o que constitui um ativo a ser preservado. A não importação do conflito para o interior da sociedade brasileira deve ser uma conduta básica.
A sociedade brasileira é plural nas suas origens, sua composição e nos seus desdobramentos históricos. Foi nesse pano de fundo que a Constituição positivou a diretriz de consagrar, como um dos objetivos do país, a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos de qualquer natureza e que, nas suas relações internacionais, coerentemente se rege pela solução pacífica de controvérsias, de cooperação e do repúdio ao terrorismo e ao racismo. Assim, a importação do conflito para o interior da sociedade brasileira se contrapõe tanto ao espírito e à letra da Constituição, como à manutenção do soft power do país na vida internacional.
[A] importação do conflito para o interior da sociedade brasileira se contrapõe tanto ao espírito e à letra da Constituição, como à manutenção do soft power do país na vida internacional.
Qual seria a sua mensagem para a comunidade árabe e palestina no Brasil?
FL: O Brasil tem sido um exemplo de país onde a coexistência pacífica se mostra possível. Somos um país – assim como outros em nosso continente – formado por uma vasta e valiosa diversidade, no qual, apesar de termos origens e costumes diferentes, vivemos uma vida de paz, de respeito e de tolerância. Desejamos sempre que cada comunidade esteja segura e possa prosperar. Juntas, as comunidades podem ser ótimas parceiras na construção de uma sociedade mais democrática e mais harmônica.
Entrevista enviada por mídia escrita em 30 de julho de 2024.
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