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Mercosur in the Electoral Labyrinth

Comments on the Program Focus of the Two Leading Presidential Candidates

A Política Externa é um item de escassa presença nas campanhas presidenciais, uma vez que a atenção do eleitorado está concentrada em temas mais urgentes, ligados às suas condições de vida (no presente caso, desemprego, inflação, sobrecarga fiscal...). Esse imediatismo ignora vínculos importantes do impacto do cenário internacional na economia e na política interna brasileira, como comprovam as turbulências geradas pelos preços dos combustíveis no corrente ano. Nessas condições, esse capítulo não constitui a parte mais elaborada dos programas de governo dos candidatos, na presunção de que não estará entre as principais fontes de definição do voto do eleitor. Se isso é verdade para a política externa como um todo, com mais razão ainda para o tema da integração regional, e para o apêndice que o Mercosul representa.  Seja porque a matéria é regulada pelo ordenamento jurídico da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), com seu jargão próprio, seja porque o projeto é visto distintamente por diferentes observadores. Essa tensão é perceptível no Mercosul desde o início, entre os que o consideram um programa destinado a incrementar o intercâmbio e a promover a complementaridade regional, com vistas à inserção competitiva de seus integrantes no mercado internacional, em um quadro de “regionalismo aberto”, e, do outro lado, por grupos que encaram o Mercosul como uma cópia imperfeita do figurino europeu, uma barreira protecionista indispensável contra a concorrência de países mais competitivos e uma criatura dos tempos “neoliberais” da época de Collor e Menem. Essa dualidade se mantém até hoje, atuando como um amortecedor das urgentes definições pendentes, como decidir se o Mercosul deve continuar a ser uma união aduaneira, apesar das dificuldades que o projeto enfrentou até agora, ou se deve se tornar uma área de livre comércio, em que todos poderiam ajustar sua tarifa externa às conveniências do interesse nacional e o Brasil poderia desenvolver uma política regional desvinculada das condicionantes impostas pelo bloco. Isso não significa desmontar todos os acordos negociados no Mercosul, nem abrir mão de parcerias estratégicas históricas na região. Menos ainda significa perder de vista o objetivo de bom relacionamento com o entorno geográfico imediato, ingrediente indispensável para a manutenção da paz e para a prosperidade de cada um dos países da região e, em última instância, para o Brasil e sua maior projeção internacional.   

Essa dualidade se mantém até hoje, atuando como um amortecedor das urgentes definições pendentes, como decidir se o Mercosul deve continuar a ser uma união aduaneira, apesar das dificuldades que o projeto enfrentou até agora, ou se deve se tornar uma área de livre comércio, em que todos poderiam ajustar sua tarifa externa às conveniências do interesse nacional e o Brasil poderia desenvolver uma política regional desvinculada das condicionantes impostas pelo bloco.

A leitura de seus tratados constitutivos, dentre eles o de Assunção, seu pacto fundacional, não fornece pistas seguras para uma interpretação capaz de superar essa ambivalência, posto que abriga objetivos programáticos que convivem com alguns notórios tributos à teoria política da integração. Esse resultado decorre da dinâmica entre os negociadores brasileiros e argentinos, de um lado, formados nos tempos do ambicioso, mas assumidamente “realista” e “pragmático”, programa de integração bilateral do período Sarney/Alfonsín, e os novos sócios, em especial o Uruguai, com sua tradição jurisdicista, que patrocinou a introdução de cláusulas para tornar o Mercosul um projeto alinhado com a doutrina econômica clássica, condicionando seu acatamento à aprovação do Tratado por seu Parlamento. Cláusulas que ironicamente estão hoje na origem das principais críticas ao “déficit institucional” do projeto e que o Governo oriental ameaça desrespeitar para celebrar acordos de livre comércio individualmente, em flagrante contradição com a prática de uma união aduaneira, o que não se confunde com as liberalidades do artigo 8º do Tratado de Assunção, permitidas exclusivamente durante o “período de transição” (encerrado em 31 de dezembro de 1994). Esse impasse deveria ser superado de uma vez por todas, para retirar o Mercosul do limbo em que se encontra. 

No Brasil, as posições sobre integração regional dos principais candidatos à presidência refletem a mesma polarização identificada em seus programas políticos e econômicos. O do atual ocupante do Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro é, a bem da verdade, omisso a respeito. Sua  ênfase está claramente voltada para uma aproximação com o mundo desenvolvido, via acessão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), participação no G-20 e nos BRICS. Nosso “entorno geográfico nas Américas e no Atlântico Sul” é mencionado apenas no contexto da busca genérica de “mercados, fontes de investimento e parcerias de cooperação com países de todo o mundo”. Visto contra o pano de fundo da história recente, o Governo atual manteve, durante sua fase mais acentuadamente ideológica, nos dois primeiros anos, um claro distanciamento da Argentina kirchnerista e adotou um “alinhamento automático” com a Casa Branca da época de Trump, que provocou tensões com o regime da Venezuela, apoiou a inusitada eleição de um americano para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento e alcançou duvidosos resultados comerciais em matéria de acesso do aço, alumínio, papel, açúcar e outros produtos brasileiros ao mercado dos EUA. Os indícios do roteiro para um eventual novo mandato têm assim que ser buscados nas declarações do ministro Paulo Guedes, por seu protagonismo nesse campo. Sua posição foi explicitada antes mesmo da posse, em 30 de outubro de 2018, quando declarou que a Argentina e o Mercosul não seriam prioridade para o novo governo, porque só negociavam com quem tinha “inclinações bolivarianas” – o que exclui, desde logo, qualquer coordenação política com a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Em 19 de agosto de 2021, criticou a ausência de acordos comerciais com o mundo e defendeu "uma rebaixa inicial de 10% na Tarifa Externa Comum" (TEC), medida que soou “irrelevante para o setor industrial brasileiro", se o intuito era melhorar a competitividade dos bens manufaturados, a menos que estivesse associada a uma reforma tributária e à eliminação dos impostos internos incidentes sobre as exportações de produtos industrializados (Associação de Comércio Exterior do Brasil 2021). No dia seguinte, no Senado, sugeriu que os quatro países buscassem a convergência de suas políticas fiscais em uma Área de Livre Comércio (ALC), apesar dessa pretendida harmonização integrar, normalmente, a agenda de estágios mais avançados de integração do que uma ALC. Em um único ponto, Bolsonaro e Lula coincidiriam (mesmo que parcialmente e no plano declaratório): na criação de uma moeda única para a América Latina, no caso de Lula, e para o Mercosul ou Brasil e Argentina, no caso de Bolsonaro. Propostas que parecem predestinadas à mesma sorte do natimorto "Gaúcho", anunciado em 1987 pelos dois países maiores. O diagnóstico de Guedes é que “depois de um início forte, com integração regional, o Mercosul foi perdendo a importância ao longo do tempo” (ver Russi 2021), conclusão que coincide com boa parte dos analistas.   

O atual programa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Fundação Perseu Abramo 2022) apresenta, em seu capítulo dedicado à política externa, a proposta de recuperar sua versão “ativa e altiva”, a que atribui ter alçado o Brasil “à condição de protagonista global” (embora o exame da agenda formulada sinalize a opção pela busca dessa proeminência no antigo Terceiro Mundo). O programa destaca a contribuição do país “ao desenvolvimento dos países pobres, por meio de cooperação, investimento e transferência de tecnologia”, o que promoveria um retorno à “cooperação internacional Sul-Sul com a América Latina e África”. O enunciado parece ser uma paráfrase da controvertida “política de generosidade”, defendida por Lula na inauguração do Parlasul, em 2006. Nesse contexto, anuncia o compromisso de “fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics”. O objetivo final seria “a construção de uma nova ordem global comprometida com o multilateralismo”, com vistas a “atender as necessidades e os interesses dos países em desenvolvimento”. Uma “releitura” dos propósitos dos Tratados constitutivos do bloco foi externada por Lula em 2006, quando se propôs a “mitigar as assimetrias políticas e estruturais” dos Quatro, tese reforçada pelo Alto Representante brasileiro no Mercosul, em 2012, ao qualificar como “objetivo supremo” do bloco “a promoção do desenvolvimento econômico e social equilibrado dos quatro Estados”. Antecedentes que contrastam com a falta de apoio do Sul à candidatura brasileira à OMC em 2005 (somente viabilizada em 2013) e com as reticências dos latino-americanos ao pleito brasileiro por uma cadeira de membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Sem contar que os financiamentos do BNDES a empreiteiras nacionais nos países vizinhos redundaram em grandes escândalos de corrupção, que afetaram a própria sobrevivência dessas empresas. Em suma, o programa está centrado na nostalgia de um passado que está longe de ter sido exemplar e que terá que se ajustar a um novo paradigma, de forma a enfrentar os desafios  do mundo que emergiu nos últimos anos.      

Do conjunto de observações acima, uma merece especial atenção. Essa tem a ver com a intenção brasileira  – compartilhada pelo Uruguai – de negociar novos acordos comerciais, se necessário de forma individual. O principal alvo das reclamações é a Decisão 32/00 do Mercosul, que prevê a negociação em conjunto com os demais membros da União Aduaneira. Exigência a rigor supérflua, posto que o regime da Tarifa Externa Comum implica, como seu próprio nome indica, que as tratativas se deem pelo bloco e que seus resultados sejam aplicáveis a todos (sob pena de não serem “comum”). A única saída legal seria transformar a União Aduaneira em uma Área de Livre Comércio, em que cada um adotará sua tarifa individual, mantida a livre circulação de bens. Esse Mercosul livre-cambista provocou reticências no Brasil, no passado, quando nossos empresários apostavam na união aduaneira como uma forma de evitar que os demais integrantes do bloco importassem bens de capital, insumos e matérias-primas com tarifa zero e depois exportassem para o Brasil, livre de gravames, uma mercadoria mais barata e de melhor qualidade do que a nacional. Hoje, ao contrário, a ênfase do grupo parece ser na maior racionalidade da estrutura tarifária doméstica. Enquanto essas mudanças não ocorrem, a celebração de novos acordos permanece afetada por dois complicadores “estruturais” (Marques 2016). De um lado, o baixo índice de competitividade industrial dos dois principais membros do Mercosul, o que estimula uma atitude defensiva de sua parte (na lista do International Institute for Management Development, o Brasil ocupa o 59º lugar entre 63 países, à frente de dois outros sócios, a Argentina e a Venezuela, ambos abalados por uma forte espiral inflacionária). De outro, as negociações com terceiros em geral refletem um trade-off em que o Mercosul (leia-se, sobretudo Brasil e Argentina) tem como moeda de troca a abertura de sua economia no setor industrial, em contrapartida a quotas pouco atraentes e minguadas no campo agrícola, altamente protegido, onde o Mercosul detém uma alta produtividade. No caso do acordo com a União Europeia (UE), essa equação perniciosa consegue mobilizar resistências no outro lado do Atlântico, dada a famigerada aversão dos ruralistas europeus a qualquer medida que fragilize seu controle do mercado agrícola comunitário, e dúvidas deste outro lado, ante as incertezas sobre o alcance da “cláusula de prudência” adotada, que autoriza o bloqueio das exportações de alimentos, mesmo por motivos “sem comprovação científica”.  

Assim, independentemente do resultado das eleições presidenciais, dois pontos deveriam ser preservados como cláusulas pétreas do Mercosul, sobretudo ante a possibilidade de pressões em favor da aprovação do ingresso da Bolívia como membro pleno (pendente apenas do Congresso brasileiro), e do eventual cancelamento da suspensão da Venezuela (desde 2016, por transgressão à “cláusula democrática”). Primeiro, a necessidade de se manter o sistema de votação por consenso, em que medidas são aprovadas pelo voto favorável do todo ou de parte do bloco, desde que não haja voto contrário (o que não se confunde com o regime de unanimidade, mas preserva o direito de veto). Descartada, por contrária ao espírito de associação entre países igualmente soberanos, a hipótese de um voto brasileiro superior à soma dos demais (por “deter o maior PIB dentro do grupo”, na expectativa exaltada de alguns), em qualquer outra matemática seríamos vencidos pela combinação dos votos dos outros sócios. Na prática, estaríamos ressuscitando o modelo de “alinhamentos pendulares”, entre Brasília e Buenos Aires, que caracterizou o período pré-Mercosul, de competição por aliados regionais, sobretudo na Bacia do Prata, para gáudio dos demais. Ou seja, o Brasil estaria vulnerável à formação de coligações e muito provavelmente se condenando a um “isolamento esplêndido”, no moldes a que estão submetidos os EUA na Assembleia Geral da ONU. Em segundo lugar, essa situação se agravaria ainda mais no contexto da eventual adoção da supranacionalidade no Mercosul, iniciativa que parece contar com a simpatia de Lula, a julgar por suas declarações em Córdoba (2006) e Rio de Janeiro (2007). Em outras palavras, o Mercosul abandonaria sua dimensão intergovernamental, em que cada medida tem que ser submetida à aprovação dos países-membros, e passaria a ser gerido por um órgão centralizado, com poder propositivo, controlado por uma merco-tecnocracia, nos padrões europeus. Vale dizer, com uma estrutura muito mais complexa e onerosa, voltada para a regulamentação de vários pontos da política econômica e social. A saída do Reino Unido da UE constitui o exemplo mais dramático até agora do mal estar com a interferência de uma entidade não eleita, com valores nem sempre coincidentes com os das sociedades para a qual legisla (desde sobre os limites admissíveis da curvatura do pepino até as quotas de imigrantes que deve receber).   

O Mercosul era, nos anos 90, um projeto entre países com alto volume de trocas entre si, de participação residual no comércio internacional, com uma complementaridade relativa aceita por todos. Venezuela e Bolívia, quando assumirem sua posição como membros plenos, forçarão novos debates sobre políticas setoriais  no bloco. A agenda terá assim que tratar de temas de natureza assistencial e outros, por exigências do comércio internacional, como o meio ambiente, que o Brasil, como grande player e superpotência alimentícia, não pode simplesmente ignorar. Um novo mundo, em que os EUA perderam importância relativa como mercado, credor e fornecedor de armamentos na região. Em que a Rússia se tornou uma presença de grande peso na Venezuela. Em que a China se tornou o principal destino das exportações e  fonte de financiamento de vários países latino-americanos, ao ponto de  algumas vozes na Argentina atribuírem a Pequim condicionar a liberação de parte de um crédito swap de US$ 18.500 milhões, à luz verde para “a construção das centrais nucleares”, para “comprar mais reservas de lítio” e obter acesso às licitações de 5G, “vetadas pela Casa Branca” (Lejtman 2022). Esse conjunto de questões torna a política regional muito mais complexa do que nos bons velhos tempos da década de 1990. Qualquer que seja a orientação do programa do candidato eleito, o Brasil deveria se empenhar no objetivo de, cumulativamente, ingressar na OCDE e restabelecer as linhas de comunicação com todos os seus vizinhos, de forma a voltar a ocupar o papel que historicamente desempenhou na região. O que significa repensar o Mercosul em termos realistas, para que não se torne, como sucede com frequência na América Latina, mais um arranjo integracionista frustrado. Surpreende apenas que, a exemplo dos diamantes, sejam todos eternos.  

 

Rio, 20 de setembro de 2022 

 

Referências Bibliográficas

Agência Brasil. 2018. “Brasil perde US$ 1 bi por ano com barreiras contra seus produtos, diz CNI”. Economia.uol, 10 de outubro de 2018. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/10/10/brasil-barreiras-comerciais-estudo-cni.htm

Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). 2021. Reunião do Conselho de Comércio Exterior do Mercosul - MERCOEX. Relatório. 40o Encontro Nacional de Comércio Exterior. Rio de Janeiro: ENAEX.

Fundação Perseu Abramo. 2022. “Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil 2023-2026”. Fundação Perseu Abramo, 20 de junho de 2022. https://fpabramo.org.br/wp-content/uploads/2022/06/documento-diretrizes-programaticas-vamos-juntos-pelo-brasil-20.06.22.pdf

Lejtman, Román. 2022. “El difícil equilíbrio diplomático de Massa – estabilizar la economía con apoyo de Estados Unidos y contener los intereses de China en la Argentina”. Infobae, 14 de agosto de 2022. https://www.infobae.com/politica/2022/08/14/el-dificil-equilibrio-diplomatico-de-massa-estabilizar-la-economia-con-apoyo-de-estados-unidos-y-contener-los-intereses-de-china-en-la-argentina/

Marques, Renato L. R. 2016.Por um acordo de livre comércio”. Estado de São Paulo, 8 de julho de 2016.

Russi, Anna. 2021. “‘Brasil é grande demais para ficar preso em gaiola’, diz Guedes sobre Mercosul”. CNN, 19 de agosto de 2021. https://www.cnnbrasil.com.br/business/brasil-e-grande-demais-para-ficar-preso-em-gaiola-diz-guedes-sobre-mercosul/


Recebido: 13 de setembro de 2022

Aceito para publicação: 26 de setembro de 2022

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